Número 13 Ano - 1934

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Letrados, entre nós, festejaram o 4.° centenário do nascimento de Anchieta. 

Com surpreza fui notificado de que o meu nome se arrolára entre os obreiros do dia. “Anchieta e a Medicina” seria o tema compulsório. 

Atinei que, nem por médico, nem por letrado, se justificaria a temeridade do sufrágio. Mas, à cerimonia comemorativa que valia como consagração à humildade cristã, quiseram ajustar o sucesso da mais humilde servidão católica. 

Todo sacrifício é pouco, diante do louvado Venerável, para cuja lembrança não se consente a reserva de nenhum mortal e brasileiro. 

Infelizmente e para deslustre da festa, o lume intelectual jámais se mediu em mim, por aquela servidão, embora cioso da pósse dela no resguardo a que me afinco dentro em pia obediência, cativo da minha fé, e só por ella arriscando, na complacência do devoto, o desprimôr da devoção 

Rascunhos, notas, apontamentos esparsos do ementário religioso e histórico das horas que vou usurpando à medicina militante, suscitaram-me o desejo de alcançar a restrição da penitencia no assentimento ao tema em apreço. 

A história médica das santas missões está por fazer-se. A medicina foi apanágio das rudes lides e nobres canseiras dos sacerdócios das ordens religiosas, em todos os quadrantes do mundo por onde penetrou o verbo divino, rasgando á alma do íncola o caminho da cristandade. 

Nenhuma evolução social se processou ainda impune das eivas que as civilizações conjuram em seus sucessos regulares e em seus cursos fatais. Todos os progressos que se fizeram à sombra da Cruz missionária guardam o traço amargo das devastações, males endêmicos e epidêmicos, flagelos e doenças que exaltaram, na glorificação apostólica dos maiores civilizadores da humanidade, a fatalidade do sofrimento temporal. 

Emquanto palpitar um coração humano sôbre a Terra, tudo quanto se fizer com o propósito de clamar justiça para a obra do apostolado dos filhos de Loyola não será suficiente para resgatá-la dos seus esconjurados inquinadores. 

São as vozes de sepulcros indômitos que conclamam o revide de uma ressurreição. A renitência arde no símbolo de uma flámula o da morte heróica, o saial dos santos que o martírio tragou, na fauce dos mares, na voragem das selvas, na frágoa dos lapedos ou no buxo dos íncolas. 

O pálio da consagração será um estandarte cerzido com os retalhos das batinas dessepultas. 

A obra de tais heróis, os fundadores de um mundo, foi grande de mais para servir de conteúdo à consciência minúscula de seus denigridores. 

Na marcha irregressivel para o seu destino, á incidência do primeiro ajuste histórico, o seu apostolado reluz no circulo mágico desta ironia: o de haver atenuado a responsabilidade dos próprios algozes. 

Se não fôra o jesuita, sôbre cada mancha vomitada pela civilização sôbre os solos virgens do orbe, se ergueria o obelisco de uma tirania. E a história da conquista humana guardaria o ciclo tenebroso das devastações deshumanas que êle, manso mediador, ajudou a atenuar.

Este livro é a paz de um retraimento vigilante que se converte em fervor devocional de submissão ou que transfigura a consciência de um protesto fervoroso na penitência de uma confissão pública. 

Eu vejo em cada mortal uma divida ao apostolado jesuitico. 

E’s filho do Brasil? Lembra-te de que foi o jesuita quem pôs a Cruz, pela primeira vez, diante dos olhos dos teus antepassados em agonia; foi o jesuita quem fraternizou com a braveza dos íncolas na trincheira aberta por ambos para a defesa do que é hoje a tua Pátria; foi o jesuita quem plasmou os étimos do sentimentalismo ancestral de teus avós na tradição oral do idioma com que balbucias o nome de teus pais; foi o jesuita quem amassou o primeiro barro da lareira agreste, trazendo da penumbra heretica das ocaras o teu irmão longinquo e indiferente; foi o jesuita quem ajoelhou na gleba, submisso à maça fratricida, irmã gemea das inubias antropófagas, no voluntário martirio da morte donde raiou o sol da civilização que te alumia; foi o jesuita quem atou na ferida cruenta do teu irmão guerreiro o primeiro penso cirurgico, deu-lhe o electuário balsámico das antipeçonhas e ministrou-lhe a seiva teriecal da flora brava contra o fantasma alucinante das primeiras epidemias que te flagelaram. 

Mas, até aí, reluz o toque divino do martirio deles, pois o coração lacerado dos nossos avoengos vai protelando a paga atenuada na razão da distância que o separa do silencioso credor dos testamentários da divida. 

Faltava a voz da Medicina, ainda esparsa, e só ouvida ao esmo das tribunas e dos pulpitos, sonorizando a flama de sacros e leigos retóricos. 

Simples comentário ampliado, ainda não em si dos aplausos que o obsequiaram quando resumido em oração na tribuna do festejo ao 4.° centenário, “Anchieta e a Medicina” é o primeiro tomo para a História da Medicina Jesuitica do Brasil. 

Anchieta, o Galeno Jesuítico do Brasil, que melhor nome lhe não assenta, ingréssa, definitivamente, no ról dos paladinos cristãos da medicina do novo-mundo.