A notícia da morte de Libério Neves, no dia 11 passado, aos 85 anos, me fez lamentar uma vez mais que tão pouca gente, bons leitores inclusive, conheça a arte deste esplêndido poeta. Goiano amineirado – “goianeiro”, rotulou o colega mais velho Bueno de Rivera –, nascido em Buriti Alegre, aos 18 ele fincou barraca em Belo Horizonte, para tocar seus estudos, e ali viveu até o fim, sem jamais ter publicado livro para além das fronteiras de Minas Gerais.

De lá despachava seus escritos de poesia, poemas memorialísticos em prosa e literatura infanto-juvenil, quase todos em edições toscas, várias delas em tiragens tão curtas que não seria exagero considerá-las confidenciais. Aqui e ali, seus despachos poéticos chegaram a boas mãos, sem contudo suscitar um reconhecimento consistente, capaz de lhe assegurar a merecida ressonância. Para isso faltou, provavelmente, um corpo a corpo presencial, hoje opcional, porém indispensável nos anos em que ele viveu e produziu.

Pensando no escasso trânsito que teve até agora a poesia de Libério Neves, penso também em outro poeta igualmente refinado, o grande Emílio Moura, um daqueles moços iconoclastas que, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, tentaram, nos anos 1920, chacoalhar a pacata paisagem não apenas literária de Belo Horizonte com as novidades do nascente Modernismo. Os tais “rapazes desatinados” que Djalma Andrade, escriba das antigas, acusou de terem invadido “o templo de Apolo” e quebrado “as estátuas dos deuses imortais”.

Ao contrário de Drummond e Nava, Emílio Moura permaneceu na província que por muito tempo foi Belo Horizonte, em vez de ir batalhar espaço no Rio de Janeiro, então o centro do poder cultural no país. Quando se arrependeu, já era tarde.

Lembro-me da tarde em que, na redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, o diário oficial do Estado, onde no final dos anos 1960 eu trabalhava sob o comando de Murilo Rubião, o doce Emílio Moura, com aquela voz que era quase um sussurro, buscou convencer-me a me mandar para ambientes menos sufocantes do que era então Belo Horizonte. Só faltou dizer, enfático, como Hélio Pellegrino a mim e a outro jovem escritor, os três à beira de um frango ao molho pardo, como argumento para nos concitar a partir, como ele próprio fizera em 1952: “Minas é um útero pantanoso!”

Para sustentar no concreto o seu conselho, Emílio Moura me tomou pelo braço e levou até a janela do velho prédio da Imprensa Oficial, aberta sobre a avenida Augusto de Lima – e, apontando o dedo longo e nodoso, me desafiou a contabilizar o tanto de negócios que haviam surgido e em pouco tempo desaparecido em cada um dos pontos comerciais à nossa frente. “Aqui as coisas não têm permanência”, disse Emílio, “e, quando mudam, é quase sempre para pior”. Sem coitadice, fez em seguida o que me soou como balanço de seus penares de poeta em Minas: “Você publica um livro e não acontece nada; publica o segundo, a mesma coisa – e o terceiro você já nem escreve”.

O panorama, felizmente, se transformou, não faltando evidências de que jovens escritores e artistas já não estão condenados a bater asas rumo ao Rio ou a São Paulo. Mas não era assim nos começos de Libério Neves na literatura, e ele em mais de uma ocasião contou que gostaria de ter feito as malas, e que as circunstâncias de sua vida não deixaram. Nem por isso reclamava do abafamento cultural em Minas, onde, como lembrou Emílio Moura, o silêncio em torno da obra podia silenciar também o autor. Até o fim, Libério fez o que pôde para destilar e espalhar sua poesia fina e sem rebarbas, nascida da fonte privilegiada de quem se formou na leitura dos maiores – Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral de Melo Neto –, e que soube colher no concretismo o que nele havia de melhor, sobretudo a recuperação do peso essencial de cada palavra.

Tudo o que Libério Neves pôs em livro – em Pedra solidão, O Ermo, Circulação de sangue e outros mais – resultou de um implacável polimento da linguagem, coisa de artesão que se aplica à madeira para dela eliminar o que não preste, com o risco, bem-vindo risco, de que, condenada desde o início, toda a peça acabe reduzida a lascas e serragem.

Tive o privilégio de aprender alguma coisa com esse artista que, modestíssimo, jamais posou de mestre, e se mais não aprendi não foi por lhe faltar uma paciente generosidade. Nos meus agrestes 21 anos, pedia que lesse contos meus, e Libério me estimulava a discutir, sem contemplação, a pertinência de cada palavra, de cada vírgula posta no papel.

Muitos anos depois, aqui em São Paulo, tentei retribuir um pouco da ajuda que dele recebi, e me esforcei, em vão, para emplacar Libério Neves nalguma editora que lhe proporcionasse audiência digna de sua arte. Mais sucesso teve Jaime Prado Gouvêa, o contista de Fichas de Vitrola, que em Belo Horizonte vem se desdobrando para manter vivo o Suplemento Literário criado há mais de meio século por Murilo Rubião, e para tirar do esquecimento, por meio da ressurreição de livros, a obra de escritores como Ildeu Brandão e Duílio Gomes. Num esforço obstinado e sem alarde, como é do seu feitio, o atual diretor do SL conseguiu que a editora da UFMG publicasse, em 2013, a antologia Papel Passado, de Libério Neves, organizada no capricho e apresentada pelo poeta Fabrício Marques.

Não sei se o livro – integrante, sintomaticamente, da coleção Inéditos & Esparsos – chegou a outras praças além da capital mineira, e se dele, seis anos passados, restam exemplares além da dúzia e meia que encontrei há pouco na Estante Virtual, quase todos eles ainda virgens. Se forem os últimos à venda, haverá para mim o consolo de que sejam prontamente arrebatados pelas melhores mãos.

 

Por Humberto Werneck,
publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de agosto de 2019