Não fazíamos parte dos “desatinados”. (O Desatino da Rapaziada de Humberto Werneck. Instituto Moreira Salles. Casa de Cultura de Poços de Caldas. Companhia das Letras. 1992). Éramos também classe média, porém mais modestamente aquinhoados. Nossa geração, que precedeu a deles, relatada no livro referido, não gozava da mesma liberdade, porque viemos alguns anos antes.
O desvario nosso, bem mais comportado, realizava-se nos footings na avenida Afonso Pena, na Praça da Liberdade, na Rua Itajubá, no bairro da Floresta – famoso por suas moças bonitas – ou então, em Santa Efigênia, em frente à igreja, na Avenida Brasil. Não significa, entretanto, que participávamos apenas daquele saudável e saudoso divertimento dos jovens – moços e moças – do tempo das serenatas. Moçada muito mais moderada que a de hoje, nossas festas tinham ainda a dureza dos costumes éticos, morais e religiosos daquela época. Eram, porém, bem mais românticas. No footing, fosse na Avenida Afonso Pena, na Praça da Liberdade, na Floresta ou em Santa Efigênia, era a busca das namoradas, ou o simples prazer de vê-las desfilar com seus vestidos domingueiros, seu perfume de mocidade, seu encanto de juventude. Nos bailes “assustados”, que se realizavam em casas de família – e que tinham esse nome em virtude de não terem sido programados – era a sensação de ter a namorada, ou a pretendida, presa entre os braços nos volteios de uma dança bem comportada. Os “assustados” aconteciam naturalmente. Aconteciam para comemorar alguma coisa inventada por nós mesmos a partir de um motivo qualquer, para festejar um aniversário sem programa, para confirmar um namoro já autorizado pelos pais da moça, ou então, apenas para propiciar o início de um namorico novo, ainda meio escondido. O relacionamento moça/rapaz continha muito mais sentimento do que o de hoje, na base do oi, do bicho e do cara. E pior agora, do ficar.
A abordagem às namoradas era bem complicada. A aproximação meio demorada e cheia de truques. Do vaivém dos footings, ao “ocasional” encontro das mãos, à conversa no portão, até, chegar ao beijo – um leve toque no rosto ou nos lábios, quando acontecia – levava um tempão danado. Havia, além do footing, do flirt e das namoradas, as escapulidas pela noite, em busca da boemia. Preferentemente na Rua dos Guaicurus e imediações, onde ficava a zona boemia, a ida aos cabarés e rendez-vous, que os mineiros chamavam de redevu, a visita, às escondidas, a alguma daquelas casas suspeitas, muito reservadas e que se assemelhavam às casas noturnas, tipo “luz vermelha”, dos romances de Jorge Amado.
Eram fugas que não chegavam a ser rotineiras, porque dependiam do soldo e da folga. Ainda nem se sonhava com o facilitário dos atuais motéis. Que diferença! Mas o famoso Cabaré da Olímpia, o Palácio de Cristal ou o Montanhês Dancing eram também lugares de boa diversão e bem frequentados. Depois veio a natural decadência e hoje não existem mais. Havia, naquela quadra da vida, as românticas serenatas! Muito em moda no meu tempo o tango argentino, as dolentes modinhas do nosso cancioneiro, o samba-canção, o chorinho, o bolero. Carlos Gardel, Pedro Vargas, Francisco Alves, Noel Rosa, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Carmen Miranda e tantos outros grandes intérpretes que embalaram nossa juventude. E nós, seresteiros improvisados, soltávamos nossas vozes apaixonadas ao clarão da lua, nas frias noites de junho e julho da Belo Horizonte de minha saudade.
Gemia em nossos peitos o coração mineiro trazido, principalmente, de Diamantina, Ouro Preto e Montes Claros, que disputa a autoria de canções seresteiras com a cidade onde nasceu Juscelino.
As poéticas serenatas são costumes dessas alegres e românticas cidades. Diamantina, pelo seresteiro mor que foi o nosso saudoso JK, ainda ostenta o título de cidade-rainha da boa e romântica seresta. O nosso Juscelino, um pouco mais velho do que a Rapaziada de Werneck encantava-se com as noites de luar e ressentia-se de sua falta nas noites escuras de novilúnio. Noites tristes sem seresteiros, sem serenatas. Sem namoradas, sem romance.
E íamos nós, cantores apaixonados, sob as janelas das namoradas, de rua em rua, de casa em casa, derramando nossos amores, nas vozes nem sempre muito afinadas, mas enchendo de romance as noites e os corações das donzelas despertadas no delírio das declarações amorosas de seus cantores noturnos. Nessa época o fox-trot e as canções americanas, trazidas pelos grandes musicais de Hollywood, já começavam a lotar os cinemas da cidade. Janet Mac Donald, Nelson Eddy, Martha Egert, Fred Astaire, Ginger Rogers, Bing Crosby, Cid Charise, Ukele Ike – o primeiro que interpretou a canção Cantando na Chuva num musical de 1929, mas só apresentado em BH na década de 30 – transformada depois num clássico da música americana, na magnífica interpretação de Gene Kelly, no belo filme Cantando na Chuva.
As músicas cantadas por esses artistas, com versão para o português, tornaram-se, muitas delas, obrigatórias nas noites de luar inspiradoras dos amantes meio boêmios ou mesmo boêmios da cidade.
Nossa condição social e de alunos de uma escola de formação militar, cadetes que éramos, obrigava-nos ao mais rigoroso recato. Tudo era e havia de ser feito na maior moita, como se diz hoje. Bem diferente da rapaziada de Humberto Werneck. As leis, os regulamentos e a vocação para o quartel nos obrigavam a um procedimento condizente com a carreira que pretendíamos abraçar. Havia, naquele tempo, um forte rigor disciplinar e uma exemplar noção do cumprimento do dever por parte dos homens que compunham os quadros da nossa germânica corporação.
Exigências éticas e morais, sem descurar da disciplina, eram, como ainda devem ser hoje, a essência da boa formação militar.
Havia as rodas de chope no Bar Alemão, na Rua Rio de Janeiro, quase esquina da Avenida Amazonas, fechado por causa da II Guerra Mundial. Lá, como nas fugas noturnas, íamos à paisana, para a conversa descontraída, as anedotas, a maionese e as salsichas, e, naturalmente, o chope bem gelado. Não havia a sofisticação dos salgadinhos e dos sanduíches de hoje. O negócio era mesmo mortadela, salame, maionese.
E as noites passadas em claro, em plena rua, só para ouvir o Delê contar centenas de anedotas e morrer de rir, ele mesmo, das anedotas que contava? Essas eram noites nem de amor nem de pecado. Era só aquela coisa de ficar acordado para enamorar-se da lua e ver o sol nascer. E que espetáculo! Belo Horizonte disputa com Brasília a beleza da chegada e da despedida do sol. Em Belo Horizonte ele vem de mansinho, devagar, iluminando o céu e a terra antes de surgir detrás das majestosas montanhas que emolduram a cidade. Em Brasília, não. Ele explode num enorme luzeiro, às escâncaras, logo aos primeiros momentos do alvorecer.
Assim foi meu tempo de moço, que já vai bem longe.
Pois bem, embora todo rigor, toda exigência, toda limitação, tínhamos, como todo jovem, o desejo da aventura e o gosto do risco. Queríamos sentir o sabor da novidade e aquela sensação, muito própria dos moços: ver o perigo de perto. Cumpríamos nosso dever, fazíamos também nossas farrinhas, cantávamos nossas serenatas, íamos à zona boemia, dançávamos, bebíamos, enfim, vivíamos nossa vida. Sem droga, sem violência, sem crime. Bem mais comportados que os “desatinados” de Humberto Werneck: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e tantos outros moços das décadas de 30/40, que deixaram seus nomes destacados nas áreas em que atuaram, como a literatura, o jornalismo e outras atividades por onde passaram
Por Affonso Heliodoro
Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal – IHG-DF. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 87º – Volume LVI – 2010