“QUANDO O NOME É MAIS DO QUE UM PENDURICALHO”

Por Caio Junqueira Maciel

Zuenir Ventura, na orelha do livro de Ana Maria Machado O Recado do Nome (Rio de Janeiro: Imago, 1976) observa que “o Nome próprio, em Guimarães Rosa, não é uma etiqueta distintiva e aleatória, mas um sistema carregado de intenções e significações. Compreendê-las é indispensável para fruir toda a riqueza do universo de Rosa.” Creio que não apenas em Guimarães Rosa, mas em vários autores de nossa Literatura, a começar com José de Alencar e Machado de Assis, a maioria dos nomes de protagonistas – e, em muitos casos, até de personagens secundários – são emblemáticos para a urdidura de suas narrativas.

Se o trabalho de Ana Maria Machado buscou “examinar a relação entre o sistema onomástico e a estruturação da narrativa” na obra rosiana, nosso objetivo, aqui, é apontar a significação de alguns nomes ligados às narrativas do livro de contos A vida, a morte e outros penduricalhos, de Luís Giffoni (São Paulo: Patuá, 2024)

O primeiro conto, “Sapatinhos de bebê”, é narrado por Jurema, nome que remete à planta cujo licor enfeitiçou Martim, amante da índia Iracema, fazendo-o com ele a engravidasse. A gravidez, já sugerida no lírico título, é o ponto centrar da estória: Jurema, que é tratada por Ju por seu amante, deseja engravidar-se, contrariando seu amante, Gotardo – tratado como Dinho. Este solta um palavrão, “porra”, ironicamente inserido após a sugestão de ele ser pai. Em seu nome, aliás, vem a “gota” por que tanto almeja Jurema. Acho curioso que “gota” também me faz lembrar de um antológico conto do italiano Dino Buzzati, “Uma gota”, publicado em As montanhas são proibidas (Tradução de José Paulo Paes, São Paulo: Companhia das Letras, 1993). Não preciso dizer da semelhança entre Dino e Dinho, embora o autor me garanta não conhecer esse texto do Buzzati.

Em “A garota que tinha nome de música”, há um triângulo amoroso que se transforma em ménage a trois envolvendo os jovens Douglas, Hélio e Ruby Tuesday – a misteriosa moça cujos olhos “têm o tom da carambola pouco antes de amanhecer”; nela não se pode pendurar um nome, como diz a canção dos Rolling Stones. O nome é revelado ao final, Celestina, embora houvesse já uma dica ao saber que a diarista que faz limpeza se chamava Celeste. Essa moça se divide entre Douglas (cujo nome significa águas turvas, e Hélio, relacionado ao Sol). A gravidez de Ruby vem quebrar o desenfreado erotismo como vinha se desenrolando a narrativa. Nesse conto, há uma passagem em que Ruby brinca com os pênis de seus amantes comparando-os com as espadas de Luke Skywalker e Darth Vater. E esses são personagens do célebre filme que dá título ao oitavo conto, “Guerra nas estrelas”, em que o menino Raul, nome que significa “o que segue o conselho dos lobos”, e por ter dez anos, é encarregado de levar seu primo Carlos, de 4 anos, para assistir a esse filme de George Lucas. Raul, cujo nome é luar de trás para frente, nada tem da suavidade de um plenilúnio: age como uma espécie de lobo mau, sua fala é marcada por palavrões e ele tenta induzir o primo a falar mentira para poder entrar na sessão proibida para menores de cinco anos. Fiel ao nome, que significa guerreiro, o menino Carlos luta de certo modo, evitando mentir.

E a mentira está no título do nono conto, “Os mentirosos”, ambientando em Trindade, nas proximidades de Paraty, onde um jovem músico, “Joleno”, pastiche de John Lennon, se envolve eroticamente com uma senhora mais velha, que diz que se chama Carol, nome que remete à canção de Neil Sedaka, dos anos 1950. Mas ambos são escolados em mentiras. O nome verdadeiro de Carol é Gertrudes, que significa aquela que é íntima da lança. Menos pelo significado, embora haja um quê de fálico, o que importa é o caráter velhusco do nome, que remete também à mãe de Hamlet.

Em “A nave rosa-choque”: pai (Elias) e filha adolescente (Isabella) estão em uma loja para aquisição de azulejo para banheiro. A menina quer tudo em rosa, mas o material não está disponível. Pessoas estão olhando celulares e telas de TV, pois um OVNI rosa-choque paira sobre a Casa Branca. O pai da garota crê a princípio que tudo é farsa, mas pouco a pouco vai se convencendo da espantosa verdade, outra nave paira sobre Jerusalém, um comentarista diz “Será que todos morreram? Será que esses invasores mataram milhares de inocentes, sem qualquer piedade? Meu Deus, hoje é o dia mais terrível para a humanidade. Hoje é o dia da ira”. O nome da adolescente remete à realeza, mas o mais significativo é o nome do pai, associado ao Elias bíblico, profeta hebreu citado nos Livros de Reis I e II e que subiu ao céu numa carruagem de fogo, primeiro caso de abdução que se conhece.

Nomes bíblicos não faltam em “O Profeta”, pois aqui o narrador tem o nome de Josué, e a intertextualidade que norteia a trama é o Deuteronômio – o livro da Segunda Lei –, quinto livro do Pentateuco, primeira parte da Bíblia. Josué, no texto bíblico, é o sucessor de Moisés, atua com verdadeiro militar, e tudo faz para possuir a Terra Prometida. No conto, Josué tem como companheira Dinorah, que está desaparecida. Na Bíblia, há o nome Dinah, que é filha de Jacó e Lia (aquela feiosa, irmã de Raquel, filhas ambas de Labão). Ainda, segundo o texto bíblico, Dinah é daquelas mulheres que fica à margem dos relatos, condenada ao esquecimento e reduzida ao pó. Detalhe que vai surpreender o leitor no final do conto, pois a esposa de Josué já está morta. O narrador protagonista ouve vozes na pia, privada, chuveiro, gemidos de pessoas que sofrem e ele conclui que tais ruídos nasceram de sua própria dor, da sua perda. Há uma passagem alusiva ao sol parar, que remete a uma citação bíblica. Josué frequenta igreja evangélica e um pastor lhe diz para não colocar quadros com figuras humanas nas paredes. O irmão de Josué é Davi, um marginal que acaba baleado pela polícia, mas que possui muito senso de humor, ironizando o sofrimento do irmão, aconselhando-lhe ir a um psicanalista. As vozes incitam o personagem a matar o irmão, e, ao frequentar outra igreja, inesperadamente Josué começa a falar trechos do Deuteronômio, justamente passagens que há maldições aos que desobedecem às leis. E há trecho também do Livro de Reis falando em cozinhar e comer o próprio filho. Quem não sabe que a Bíblia tem intensas histórias de horror e de sexo? A narrativa apresenta nas linhas finais um fluxo de consciência em que se encadeiam verborreia, alucinação, chacina: penduricalhos no caos de um mundo agônico.

Podemos considerar duas narrativas relativamente próximas, no que diz respeito ao desejo, à busca, ao inconsciente. São os contos “Um coelho corre na Serra do Curral” e “Amigos”. O texto do coelho é estruturado em cinco blocos, enumerado de um a cinco e mais outros dias. A protagonista tem o mesmo nome da personagem de Lewis Carroll e com ela se confunde em suas confusões de mulher senil. Ela tenta fazer um sapatinho de crochê para a bisneta, cujo nome esquecera. O nome fugiu, até que ela chega no apelido Gil, derradeira sílaba do verbo fugir no passado. O seu trabalho no crochê remete a uma velha crônica de Giffoni, marcado por um olhar de lirismo, aqui retomado: “Por isso, as velhas gostam tanto de crochê: prendem o tempo nas malhas, empurram o esquecimento para o futuro, ganham sobrevida no mundo. Enquanto se distraem, tecem a própria permanência. Quem não admira um crochê bem feito?” À medida que os dias se sucedem, vamos acompanhando a demência da velha, seu delírio a evocar as viagens de Alice em seu mundo de maravilhas.

Em “Amigos” um psicanalista chamado Jamil (formoso, belo) contrata o detetive Pereira para procurar um amigo de adolescência chamado Menahem. (antigo rei de Israel), mas abrasileirado para “Menachen” sugere o trocadilho “me achem”, inevitavelmente associado à busca, E fica claro que esses amigos têm nomes que remetem aos povos em eterno conflito, árabes e judeus… O detetive traz uma foto em que Menachem exibe um bigode com pontas que lembram anzóis, “como se quisesse fisgar o tempo perdido”. Há toda uma carga de homossexualismo velado no interesse que o psicanalista tem pelo amigo, que será reencontrado numa praça em homenagem a Rita Lee, que corre o risco de ser vandalizada, como sói ocorrer com monumentos urbanos.

Há outros textos assinalados por morte e/ou violência. Em “Crucifixos”, uma moribunda sintomaticamente chamada Dolores está em seus momentos finais, rodeada pelas filhas Laura, Leila Lydia, e o filho Betinho. A narrativa, de certo modo, retoma aspectos que Giffoni desenvolveu no romance Adágio para o silêncio, com cenas de humor negro e elementos grotescos envolvendo os rituais da morte. O humor vai se desenrolando num crescendo, como se vê, por exemplo, no apelido do sacristão Lucrécio, Incenso, que emprestará um crucifixo avantajado para o velório de Dolores. O nome Lucrécio (rico) pode estar ligado à má fama de Lucrécia Bórgia, cujo pai foi Papa. A própria figura de Lucrécio, curvado e com “a passividade arregalada” de seu olho de vidro, evoca o Quasímodo de Victor Hugo. Há mesmo a junção do sagrado com o profano, envolvendo masturbação, São Tarcísio, e o viés paródico do qual não escapa sequer o “ecce homo” e o gran finale de uma via crucis.

Em “O túmulo”, o narrador Laerte, nome que significa “o que levanta pedras”, é intimado a ir ver o túmulo que seu amigo, o previdente Zé Marcondes havia mandando edificar, seria “seu spa definitivo”. Há muita ironia na referência aos suntuosos túmulos ao redor, em que os milionários mortos são vistos como bandidos. Há um defunto chamado Denário, nome que remete à sua vida de usura. Laerte, arquiteto que optou por ser contador de histórias infantis, será responsável, junto a um empreiteiro, para a construção do túmulo. O texto tem um desfecho com pitadas de humor e o realismo fantástico. O lauto jantar num restaurante italiano. O tiramissu, e o irônico significado: me leve pra cima. O morto-vivo que é recebido por Denário.

Em “A despedida”, Antony é o protagonista, moribundo em um hospital. A cena me lembrou de um episódio da série Família Soprano, em que o protagonista, também Antony, estava em coma, rodeado por seus amigos mafiosos. O grotesco do conto reside nos palavrões do moribundo que considera Deus como o maior fake news

Um dos mais fortes textos da coletânea é “Bala perdida”, que apresenta a iniciação de Helinho, (pequeno sol), de 13 anos, no mundo do crime, ele que já trabalhava como “aviãozinho” para seu primo Nando, (ironicamente o nome Fernando significa ousado para atingir a paz) numa das bocas de fumo do Rio de Janeiro. O menino vai ser submetido a uma prova de fogo para receber as honrarias de seu primo, numa passagem extremamente cruel contrapondo civilização x barbárie. Sua primeira vítima fatal, de nome Clarisse, foi sua professora de português e seu nome, óbvio, tem ressonâncias clariceanas, e ela vai ter sua hora da estrela.

Em “O velho tem que morrer”, reaparece Nando, que estimula sua namorada Tiffany (nome oriundo de teofania, manifestação de Deus) a dar um tiro num velho que lê e escreve, ao lado de esculturas de Quixote e Sancho. Como em “Bala perdida”, “A polícia sempre dizia que as mortes nos bairros ou nas escolas tinham sido causadas por bala perdida, como se bala mudasse de direção no meio do caminho e não soubesse mais pra onde ir.”

Em “Ternura”, a mãe do traficante assassinado foge com o neto. È o único texto que não contém palavrões e justifica o pinheiro da capa do livro: A mulher vai se esconder em São Lourenço, nas imediações da Serra da Mantiqueira, onde há muitas araucárias.

Embora perpassem pelos contos de Luís Giffoni muita morte e violência, o que mais me agrada nesse escritor é a verve humorística, com destaque ao humor negro e a ironia – o que pode ser atestado em muitos dos nomes de seus personagens. Assim como em Guimarães Rosa, segundo vê Ana Maria Machado, “um autor para quem tudo significa, e em cuja obra o grande personagem é a palavra”, também em Luís Giffoni, apesar da abordagem do caos e da barbárie, o autor cré que “a Palavra tudo cria, gera e gerou”, mas há que se questionar se a Palavra é inflexível lei que permite massacres e carnificinas.

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