O escritor Agripa Vasconcelos nasceu no dia 12 de abril de 1896, em Matosinhos, cidade cercada de belas lapas calcárias, nas proximidades de Lagoa Santa. Naquela época, a região alvoroçava-se com a construção da nova capital do Estado, a Cidade de Minas, cujo traçado geométrico se sobrepunha ao casario irregularmente disposto à volta da velha matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem no arraial de Curral del Rei. A República ainda não contava sete anos, mas o século 20 despontava velozmente no calendário, a prenunciar grandes inovações. Tudo inundava o imaginário popular de expectativas e esperanças. Raiava uma era de transformações na história do mundo.
Machado de Assis vivia no Rio de Janeiro e estava prestes a fundar a Academia Brasileira de Letras, o que ocorreu em 20 de junho de 1897, poucos meses antes da inauguração de Belo Horizonte, em 12 de dezembro, período em que findava a surpreendente e inquietante Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, da qual sairia a obra prima de Euclides da Cunha.
Agripa Vasconcelos queria ser médico e foi estudar no Rio de Janeiro. A poesia igualmente o fascinava. Muito jovem, fez-se reconhecido entre os vates do tempo, ao compor versos parnasianos com a destreza que a métrica acadêmica exige de seus cultores. Essas láureas o levaram a se apresentar à sucessão do poeta Alphonsus de Guimaraens, na Academia Mineira de Letras. O desparecimento do grande simbolista, aos 51 anos, em 1921, provocou nos imortais mineiros grave preocupação. Quem haveria de sucedê-lo, quem ocuparia a cadeira do solitário de Mariana, o maior nome da poesia que de Minas se projetava Brasil afora?
Elegeu-se Moacyr Chagas, natural da cidade de Oliveira e parente do cientista Carlos Chagas, mas durou pouco sua presença na grei. Decidido a renunciar, deu ensejo a uma polêmica imensa sobre a validade do gesto inédito e radicalmente contrário à norma acadêmica. Aceita por fim a renúncia, após algazarra nos jornais de Minas e do Rio, Agripa Vasconcelos tornou-se, aos 25 anos, o sucessor de Alphonsus, sendo o mais jovem de todos os que ingressaram Academia Mineira, em seus 110 anos de existência.
Sempre exercendo a medicina, ele jamais descuidou da criação literária. E vieram, um a um, os romances logo aclamados e depois transplantados para as novelas de televisão. É fascinante que o ficcionista tenha sido captado por algumas das personagens mais significativas da história de Minas Gerais para dar-lhes corpo e alma nas páginas de seus livros.
Jorge Amado criou um elenco de figuras genuínas do contexto baiano, como a sedutora Gabriela e os olhares do mal e do bem que gravitam em torno dela. Érico Veríssimo incorporou à literatura individualidades marcantes da terra gaúcha, e soltou o destemido Rodrigo Cambará a galope pelas lonjuras do Continente de São Pedro. Paulo Setúbal buscou seus protagonistas na historiografia de São Paulo, Domitila, a marquesa de Santos, à frente do cortejo. Mas foi Agripa Vasconcelos quem deu as cores mais vivas e os sentimentos mais vibrantes à gente trazida da história para o ambiente literário, no qual todos podem praticar tanto a fidelidade ao documento quanto a liberdade de fazer o que bem quiserem, em conluio com os desígnios secretos do autor.
Legendas da província, essas personagens, no entanto, fazem parte da legião histórica que povoa a imaginação dos brasileiros. Chica da Silva, Dona Beja e Joaquina do Pompéu são matronas que compartilham suas peripécias com o país inteiro, de norte a sul acompanhadas pela narrativa vernacular de fatos e feitos da formação nacional. A senhora negra do Tijuco submeteu o contratador João Fernandes de Oliveira e todo o Distrito Diamantino, no qual ela e a filharada tinham posição de relevo. Ana Jacinta de São José, a bela Dona Beja, mandou integrar o narigudo Triângulo na caraça mineira, seduzido o ouvidor de Paracatu do Príncipe, que providenciou a anexação. Dona Joaquina do Pompéu, por vontade própria, contribuiu com recursos vultosos na real tributação de 1804, para fazer face à guerra napoleônica, alimentou a numerosa corte do príncipe regente Dom João, em 1808, e abasteceu as tropas do imperador Pedro I, em 1823, na guerra pela independência da Bahia. Quem como elas?
Dessa forma, o escritor ergueu o painel fabuloso da “Saga do País das Gerais”, desdobrando-lhe as faces para situar os diferentes ciclos da evolução socioeconômica, do ouro ao couro, dos diamantes aos canaviais, dos engenhos aos terreiros de café. Ciente dos desafios, aprimorou-se, a cada página, na caracterização das personagens de carne e osso, entre crispações e ternuras, desaforos, vinditas, intrigas, paixões e tramoias. Com mestria, compôs o “gran teatro del mundo” de que falam os barrocos, permitindo que os fautores da história mineira voltassem ao proscênio para o resgate de seus dramas empolgantes e comoventes.
Chico Rei, o chefe africano que comprou a alforria do filho, a própria liberdade e a de toda a família, ao poupar o ouro em pó colhido nos cabelos crespos e nas unhas, retrata o sórdido e aviltante regime da escravatura que por longo tempo vigorou entre nós. O barão de Catas Altas, nababo das minas de Gongo-Soco, sintetiza as fábulas do ciclo do ouro, assim como “Fome em Canaã” traz à cena os embates da ocupação das terras do vale do rio Doce. O Velho Chico, o mágico e mítico rio São Francisco, motivou o ficcionista a compor o derradeiro tomo da epopeia. Teve ele a delicadeza de dedicar o livro a meus avós maternos, Clélia e José Oswaldo de Araújo. Poeta e jornalista, José Oswaldo foi presidente da Academia Mineira de Letras. Amigo e correspondente de Alphonsus, uniu-se a Agripa por uma forte amizade.
Descendente de Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco Souto Mayor de Oliveira Campos, Agripa Vasconcelos encontrou na gloriosa antepassada uma de suas mais cativantes personagens. O presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Pompéu, Hugo de Castro, ensina que Agripa era filho de Ulisses Gabriel Vasconcelos, cuja mãe foi Joana Helena da Cunha de Sá e Castro, filha de Bernarda de Souza Machado, por sua vez filha de Maria Joaquina, que teve por mãe a matriarca do Pompéu. Pelo lado materno, filho de Orminda Guimarães Vasconcelos, o tetraneto de Dona Joaquina era bisneto de Francisco de Paula Fonseca Vianna, barão e visconde do Rio das Velhas. Desaguaram no romancista as vertentes mais genuínas dos geralistas e dos mineiros.
É justo, portanto, que o Instituto Histórico e Geográfico, a Prefeitura Municipal e a Casa de Cultura Dona Joaquina do Pompéu evoquem o escritor Agripa Vasconcelos, rendendo-lhe homenagem no transcurso do cinquentenário de seu falecimento, ocorrido em 1969. Esse tributo assume uma dimensão especial, porque é marcado pela entrega do título de sócia benemérita a Mara Sylvia Vasconcelos Mancini, que tanto se empenha na valorização do legado literário do avô. Os objetos de uso pessoal e documentos que, em nome da família, ela generosamente doou ao Instituto e ao Museu do Pompéu vêm assegurar a presença permanente do criador de “Sinhá Braba” no relicário memorial de Dona Joaquina Bernarda. Enriquecem, de modo singular, o acervo aqui reunido.
Chamado pelo presidente do Instituto, tenho a alegria de saudar a professora, tradutora e escritora Mara Sylvia, hexaneta de Dona Joaquina do Pompéu, nesta cerimônia tão cara à cultura mineira. Sob a inspiração do ícone da participação feminina na história do Brasil, acolhemos aquela que sustenta a legenda de Agripa, e em seu trabalho reconhecemos uma contribuição exemplar à valorização e à difusão da literatura, do livro e da leitura.
Ocupante da cadeira que foi de Agripa, depois de Alphonsus, e que a mim coube na sucessão do escritor, jurista e homem público Oscar Dias Correia, falo também em nome da Academia Mineira e do presidente Rogério Vasconcelos Faria Tavares, nesta saudação toda feita de afeto e apreço. A égide de Dona Joaquina e de Agripa há de iluminar o caminho de Mara Sylvia. Que seja sempre venturoso o itinerário que se lhe abriu a militância nas letras, na certeza de que “scribendi nullus finis” – escrevendo nunca se acaba, pois o escrever não tem fim, conforme reza o lema da Academia Mineira de Letras.
Maria Sylvia Vasconcelos Mancini, esta casa é sua. Seja bem vinda ao Pompéu, fonte das Minas e berço das Gerais, síntese da mineiridade e emblema da cultura do Brasil.
Sessão solene do Instituto Histórico e Geográfico de Pompéu para receber a sócia benemérita Mara Sylvia Vasconcelos Mancini, em 23 de agosto de 2019.
Por Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Conselheiro Editorial da Revista da AML, ocupa a cadeira nº 3