Rogério Faria Tavares – Da Academia Mineira de Letras e do Pen Clube do Brasil
Já nem me lembro mais em que circunstância conheci Olavo Romano. Sei que, como jornalista, tive a alegria de entrevistá-lo algumas vezes. Em pouco tempo ficamos amigos, o que não é difícil acontecer. O escritor gosta de gente, anima-se no contato sempre afável com o outro. É agregador. Lembro-me de haver conhecido o Manuelzão por meio dele. E essa é uma lembrança que não se apaga. De uns tempos pra cá, nosso relacionamento estreitou-se ainda mais, por conta do gosto comum pela literatura e pelos projetos culturais, de que Olavo é grande entusiasta. Sua gestão como presidente da mais que centenária Academia Mineira de Letras é prova do que digo. Ele abriu as portas da Casa de Alphonsus de Guimaraens e de Vivaldi Moreira para a comunidade: chamou as crianças, os estudantes e os professores, os empresários e os artistas. E eles vieram, atraídos pelo sorriso franco e acolhedor, de quem sabe que ‘academia’ é lugar de encontro e fraternidade.
Longe do intelectual cerebrino, metido em gabinete, afogado em leituras eruditas, Olavo Romano é o escritor misturado no dia a dia da cidade e de sua gente. É assim desde sempre. Foi menino de roça, na Morro do Ferro encantada, povoada por personagens inesquecíveis, imortalizados em sua obra. Continua menino, mantendo o olhar de quem vê as coisas pela primeira vez. Seu interesse pelas pessoas é genuíno, sendo esse, seguramente, um dos fatores que mais distingue o seu trabalho de composição literária de outros que se arriscam pelos mesmos caminhos.
Por muitos anos, Olavo Romano recolheu histórias pelos rincões de Minas Gerais. Resgatou tesouros enterrados, registrou em papel os relatos que não tinham como circular pelo mundo, esquecidos em fazendas distantes ou em remotos arraiais. Fiel ao que ouviu, conseguiu fazer o movimento que exige habilidade e empenho, conquista rara, de que muito poucos são capazes: escreveu a palavra falada. E o fez, sobretudo, pela qualidade fundamental da empatia, aquilo que permite a escuta aberta e atenta, despida de preconceitos e estereótipos, inspirada pelo afeto e pelo respeito integral ao interlocutor.
O benefício do plantio e da colheita de Olavo Romano é sentido imediatamente pelo leitor. De estilo suave, sua escrita flui por águas mansas e doces, quem sabe do Rio São Francisco, por onde o autor também já navegou. Como ocorre nas obras que conseguem a proeza de capturar o fenômeno da oralidade, em vários momentos o leitor é tentado a falar o texto em voz alta, e a partilhá-lo com os parentes e os amigos, absolutamente seduzido pela vivacidade e pela autenticidade alcançadas pelo autor. A perícia na construção dos diálogos, uma das tarefas mais complexas dos criadores literários, é outra fonte de prazer proporcionada pela experiência de ler Olavo Romano. O humor e a leveza são os ingredientes que dão aos pratos por ele servidos o sabor da verdadeira alta cozinha, refinada na sua simplicidade tocante, que alimenta a alma.
Lendo os casos contados por Olavo, muita gente evoca as próprias memórias e reconhece, no percurso de sua vida, situações e personagens semelhantes aos narrados. As origens rurais ainda caracterizam expressivas parcelas da sociedade brasileira, cujo processo de urbanização avançou apenas a partir da terceira década do século vinte. Quem não tem um antepassado bem próximo nascido ou criado no interior? A identificação entre leitor e obra amplia os seus efeitos, como se as histórias de Olavo Romano integrassem um passado partilhado; como se pertencessem ao repertório familiar de cada um, delicado acervo erguido pela impressionante potência narrativa das gerações anteriores; como se o autor estivesse escrevendo a nossa história…
Se no plano individual a ativação das memórias mobiliza as energias psíquicas, influindo sobre a mentalidade e o comportamento, na dimensão coletiva ela contribui para a formação e a preservação da identidade cultural de determinado grupo. Por isso, não é possível minimizar o manifesto caráter político da literatura de Olavo Romano. Se não faltam, hoje em dia, os empreendimentos destinados a explorar, depredar e saquear territórios, a missão de Olavo, desde que iniciou as suas expedições pelos quatro cantos de Minas Gerais, tem sido o oposto: descobrir, apreciar, compartir e preservar aspectos fundamentais do seu patrimônio imaterial, representados na linguagem e nos costumes do seu povo – o que acabou por conferir ao autor posição emblemática no panorama das letras do estado e do que se conhece delas, no Brasil de hoje.
Próxima do universo rosiano, a que sempre presta reverência e a que se filia, em alguma medida, a literatura de Olavo Romano está igualmente atenta aos mistérios da palavra e ao que ela é capaz de tramar. Molhado pela riqueza dos cinco sentidos, o seu verbo também tem aquele poder hipnótico, que embaralha e ilumina as percepções do leitor, ocultando e revelando, ao mesmo tempo, a história contada. Escrita a partir de 1978, a obra de Romano atualiza os conhecimentos e o imaginário do leitor interessado nas coisas de Minas. Não é, no entanto, o que se chama, apressadamente, de literatura regional. Sintonizado com a universalidade do espírito humano, o escritor de Morro do Ferro consegue –assim como o mestre de Cordisburgo – ultrapassar as montanhas, habilitando-se a falar para os leitores de todo o país.
É o que se pode comprovar, mais uma vez, nesse delicioso ‘A cidade submersa e outras histórias sortidas’. Dele emerge, aos setenta e oito anos, com o brilho no olho e a vitalidade do mais jovem de meus amigos, um autor ainda mais maduro, no pleno domínio de sua arte e das suas técnicas. Generoso, Olavo Romano oferece ao leitor mais uma fascinante galeria de personagens, apresentada na melhor prosa. Será difícil esquecer Bastião, Dona Consuelo, Bruce Lee, Isaurinha Tavares, Amália Doida e Tiãozinho. Será impossível não se emocionar, por exemplo, com a linda história de Demosthenes e Waldete, contada em ‘Uma luz que não se apaga’, título sugestivo, que me estimula a dizer que a do autor também permanecerá, para o bem da literatura que se faz em Minas, sobre os mineiros, para todos.