A trajetória que alcançou as margens do Ipiranga, em São Paulo, faz exatos 200 anos, teve início nos núcleos urbanos plantados pelos paulistas nas montanhas de Minas Gerais, mais de um século antes do brado libertador do príncipe regente. Por ter gerado a primeira sociedade urbana do Brasil, o ciclo do ouro e dos diamantes do século XVIII ensejou não só as primeiras expressões culturais genuinamente brasileiras como também a primeira grande manifestação política em favor da liberdade e da independência da colônia portuguesa.

A arquitetura e a escultura do Aleijadinho, a pintura de Ataíde, a poesia e o teatro de Cláudio Manuel da Costa e a música de Lobo de Mesquita completam-se na dimensão ética e política da Inconfidência. A etimologia diz que política, em grego, é a arte de governar a cidade.

E a primeira constelação de cidades vista no território brasileiro, configurada pelas vilas e arraiais da Capitania das Minas, proporcionou a formação de uma consciência cidadã, o compartilhamento da ideia de autonomia e a vontade política que embasaram a conjura de 1789. Tiradentes foi punido com a forca, o esquartejamento e a difamação da memória em 1792, 30 anos antes de ter seu sonho concretizado pelo herdeiro do trono de Lisboa.

Minas resistiu aos impostos, à Inquisição e à escravidão

Sendo a capitania mais populosa e mais rica da América portuguesa, Minas Gerais exerceu um protagonismo decisivo na construção da independência. A resistência aos tributos e às interdições régias, como a proibição da tecelagem, o enfrentamento da Inquisição e a lição libertária dos quilombos retemperaram o ânimo dos mineiros.

As “pérfidas ideias francesas” do Iluminismo e da Revolução, trazidas pelos filhos da terra que estudaram na Europa, alimentaram a insatisfação provocada pelos abusos do fisco e dos sucessivos governos, culminando com o de Luís da Cunha Menezes (1784-1788), o “Fanfarrão Minésio” satirizado pelo poeta Tomás Gonzaga nas “Cartas Chilenas”.

O príncipe regente dom Pedro reconheceu a importância estratégica de Minas, ao visitar a província, em abril de 1822, a fim de sondar o espírito dos mineiros a respeito do caminho a seguir. Pressionado pelas Cortes de Lisboa, que subjugaram a autoridade de dom João VI e pretendiam reduzir o Reino Unido do Brasil à condição de colônia, ele buscou a empatia e a solidariedade de Minas.

Foi recebido festivamente em São João del-Rei, Barbacena e Ouro Preto, anunciando que a libertação estava próxima – ainda que tardasse por mais 66 anos para milhares de escravizados. Ao tornar-se imperador, um de seus atos inaugurais, em 1823, seria elevar Vila Rica a Imperial Cidade de Ouro Preto, como reconhecimento do papel dos mineiros na independência.

Mineiro mostrou ao Imperador que não havia alternativa à Independência

Entre os interlocutores do príncipe estava o padre Belchior Pinheiro de Oliveira. Nascido em Diamantina e titular da paróquia de Pitangui, ele integrava a comitiva de dom Pedro na viagem entre Santos e São Paulo. No momento em foram lidas as cartas de Dona Leopoldina e José Bonifácio, disse ao regente que não havia outra saída que a imediata declaração de independência.

Coube ao padre Belchior representar o sentimento de Minas e o desejo dos mineiros desde as conspirações tramadas nos idos de 1788 e 1789. Por sua palavra incisiva, ali mesmo, junto ao ribeirão onde o príncipe acabara de se aliviar de uma indigestão, começou a etapa histórica que hoje completa dois séculos de turbulenta caminhada, em meio às esperanças sempre renovadas diante de indigestos acontecimentos.