O presidente era o general Dutra, o governador, Milton Campos, o prefeito, Octacílio Negrão, o secretário, Pedro Aleixo, as músicas mais cantadas, Não me digas adeus e A mulata é a tal.
Foi ontem. Anteontem, talvez. Muitos anteontens, certamente, tantos e tantos que não dá para contar, Mas que saudade! Estou me lembrando de carnavais passados e vividos. Muitos, bem vividos. A época é própria, a festa deveria ter acabado na terça-feira, chamada antigamente, e bota antigamente nisso, de terça-feira gorda. Gorda de quê, e por quê? Pra que saber, também?
O Carnaval, todos sabem, tem origem muito remota. A palavra significa “festa da carne”. Certamente não a carne do açougue, do Friboi do Lulinha, ou não é dele? Era a festa do corpo, do suor do corpo, do uso do corpo no corpo a corpo da folia. Folia que vem do francês, maluco. Voltando ao Carnaval, a festa da carne, ela surgiu para aproveitar, na alegria gostosa e insensata da folia, durante três dias e três noites, a véspera da quaresma. Quando tudo que possa ser considerado pecado, é proibido. A carne, inclusive a do açougue, também.
Mas o mundo mudou. Para melhor ou para pior, cada um que julgue. Mas nos muitos anteontens da saudade, a folia durava apenas três dias. E era o bastante. Na madrugada da quarta de cinzas, o começo da quaresma, os pandeiros e tamborins, as fantasias, os lança-perfumes inocentes e perfumados mesmo, eram recolhidos aos armários, que eram chamados de guarda-roupas, no aguardo dos três dias de Momo, o Primeiro e Único, do ano seguinte. Hoje, cadê as cinzas, cadê a quaresma?
No Rio, capital nacional da festa maior dos brasileiros – existe outra que a supere, existe outra cidade que suplante a alegria dos cariocas? – no Rio os blocos não saem das ruas, pelo menos até o domingo seguinte.
Na quarta-feira tem o julgamento das escolas, para apontar a campeã, a melhor mulher menos vestida, a bateria mais barulhenta, os adornos mais espalhafatosos, os carros alegóricos mais suntuosos. Na sexta ou no sábado o desfile das vitoriosas nas sapucaís alegres da vida. No domingo de sol e praia, ou de chuva, pouco importa, a comemoração continua, até que, finalmente, a segunda-feira da suposta quaresma convoque todos os foliões para o trabalho, para a rotina, para as filas dos ônibus, dos metrôs, dos caixas bancários, dos guichês das concessionárias de luz, de água, de telefone, que recebem contas sempre mais caras, sugando do trabalhador o que ele conseguiu economizar dos gastos carnavalescos. É a vida.
Alguém me pediu um texto sobre meus carnavais de antigamente. Logo eu, um falso carnavalesco, um cidadão muito sem jeito para a coisa. Mas vou me lembrar de um, o que mais me marcou, pois foi durante ele que minha vida mudou, certamente para muito melhor. Era um rapaz, ela uma menina. Não namorávamos, ainda, mas estávamos nos preparando. Tudo começou na segunda-feira, melhor dizendo, quase começou. Era o “Baile do Marinheiro” no Iate Clube, na Pampulha, uma das festas mais animadas daqueles tempos. Vesti minha calça branca, minha camisa azul, e fui para o Grande Hotel, aquele que destruíram na rua da Bahia com Augusto de Lima, encontrar meu amigo e companheiro de Iate, João Garcia. Rico, de família rica lá de Uberaba, éramos contemporâneos de escola, a velha Escola de Direito, depois apelidada de “vestusta”, pela sua antiguidade e pela sua tradição que começou em Vila Rica, depois Ouro Preto. Os estudantes pobres ou remediados moravam em repúblicas ou pensões.Os mais prósperos, hospedavam-se no melhor hotel da nossa então tranquila e amena cidade. João Garcia era um deles. Recordo-me que cheguei ao hotel e ele, olhando para meus pés, deu a sentença: “Este sapato marron não combina com o traje de marinheiro”. Tinha toda a razão, mas eu não tinha, e nunca usei, sapato branco. A solução veio rápida: “Vamos ao meu quarto, tenho outro par de sapatos brancos, e nosso número é o mesmo”. E lá fomos nós, de carro de praça (os táxis daqueles tempos), para o Iate. Mas a menina que eu procurava já tinha voltado para casa, com sua irmã, seu cunhado, que dormia sempre cedo. Fiquei lá a noite e a madrugada tentando participar dos cordões animados. Na volta para casa, perdi-me do João Garcia. Voltei com um colega amigo, que tinha já o seu carro próprio, Lúcio Pentagna Guimarães. Que ao me deixar diante de minha casa, na Rua Aimorés, entre São Paulo e Rio de Janeiro, brindou os que já dormiam no quarteirão, meus pais e irmãos, inclusive uma vizinha loura e linda, que morava em frente de minha casa, filha de italianos, com uma primorosa exibição de óperas cantadas com sua belíssima voz de tenor.
Mas aquele Carnaval não terminou no Iate, nem na cantoria do grande Lúcio. No dia seguinte, terça-feira, o baile mais famoso era o do Automóvel Clube. A menina lá estaria. Preparei meu traje de quase marinheiro, sem o sapato branco do Garcia, e fui para lá com outro contemporâneo e grande amigo, Celso de Oliveira Santos. Procurei por ela e nada. Eu e Celso portávamos um lança-perfume Rodouro. Era permitido naqueles bons tempos em que a única droga, se assim puder ser chamada, era a “prise” do lança. Os antigos me entendem. Estávamos, eu e ele, num canto do salão, com o lenço perfumado no nariz, quando percebi um braço no meu ombro, a mão do braço tomando o meu lenço. E a voz da menina, condenando a “prise” inocente. E desde aquele dia, o quase carnavalesco passou a ser um feliz e submisso súdito da menina.
Alguém pode querer saber quando tudo isso aconteceu. Posso dizer apenas que o governador era o austero Milton Soares Campos, o prefeito era o grande engenheiro Octacílio Negrão de Lima, o secretário do Interior e Justiça era o nosso professor de Direito Penal, Pedro Aleixo. O presidente, o sério e respeitado general Eurico Gaspar Dutra. O país vivia em paz, sem escândalos, sem corrupção, sem inflação, sem mensalões, sem petrolões, a lei sempre acima dos homens, aplicada por juízes e ministros corretos, isentos, independentes. E para melhor fixar a memória daquele Carnaval, posso afirmar que duas músicas fizeram o sucesso maior, Não me digas adeus e A mulata é a tal. Que diferença, que saudade!
por Fábio Doyle
Jornalista, ocupa a cadeira nº 10 da Academia Mineira de Letras. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 93º – Volume LXXI – 2015