Há uma comparação que habitualmente se faz, um consagrado clichê, entre o compositor musical e o escritor, na qual se comprova que o primeiro sempre leva vantagens intelectual e financeira sobre o segundo, porque as pessoas não se cansam de cantar certas canções, os cantores profissionais as gravam geração após geração, enquanto pouquíssimas pessoas leem o mesmo livro duas vezes. Em geral, os leitores olham a capa do livro ou o seu título e declaram “já li”, descartando-o e saem de perto dele a cantarolar velha canção, certos de que são poucos os livros que merecem a segunda leitura. A maioria dos livros que não foram lidos na época de seus lançamentos tem pouca chance de leitura posterior. Enquanto isso, por causa daquela frequência de sucessivas gravações, há ainda a vantagem, para o compositor, de que os direitos autorais serem mais generosos que aqueles destinados ao escritor.

Do lado do pintor, pode-se argumentar que é possível fazer serigrafias de seus quadros e óleo, como se elas fossem comercialmente uma espécie de CD do pintor, mas a quantidade editada, seu alto preço e as suas vendas não ocorrem com a simplicidade daquela de um disco e o seu público é infinitamente menor. A vantagem do compositor é, por certo, muito maior.

Se compararmos os trabalhos das três categorias de intelectuais e artistas na velhice, o compositor, o escritor e o pintor, este último perde para aqueles de maneira cruel. Os dois primeiros fazem um trabalho que o tempo ajuda a aprimorar pela experiência da vida, a chegada da difícil simplicidade, a troca da juventude pela sabedoria, além dos conhecimentos acumulados pela longevidade. Se há ou não indicação biográfica do autor, ninguém relaciona ou associa suas criações com a idade do seu autor ou as percebe com a qualidade diferente daquelas de sempre. Com frequência, elas são até melhores que as realizadas na sua juventude.

Já o pintor, pela falta de destreza manual que a inexorabilidade da vida e o tempo impõe a todos, tende a piorar sua obra. Há exceções, raríssimas. Rembrandt e Picasso são duas delas. A falta de segurança no traço a lápis ou no pincel é visível pelo tremor da mão e o tremido rastro deixado sobre o suporte, resultando em obras que inevitavelmente são comparadas àquelas do passado. Sorte dos artistas como Van Gogh, Pollock, Gauguin, Guignard, Portinari, Modigliani e tantos outros que, morrendo cedo, não tiveram a desvantagem de verem declinar sua vitalidade artística, sua criatividade ou mesmo seus movimentos finos e firmes no pincel ou na mistura das cores, refletidos nas suas obras. Por causa disso, não têm fase ruim nas suas trajetórias. Menos ainda apresentam nas telas algumas composições com cores amargas que certas pinturas de artistas idosos trazem. Nas obras dos pintores que tiveram a sorte da longevidade, o lugar do vigor da juventude de outrora, às vezes, se transforma em um inconsciente amargor da velhice, visível nas composições, nas cores sombrias e na insistência de continuar fazendo mal feito o que outrora foi brilhante. O resultado é desastroso e corre-se o risco de generalizar os trabalhos de uma vida, nivelando-os sempre mais baixo que o merecido. Para má sorte dos seus admiradores, as suas últimas obras pictóricas começam a aparecer no mercado de arte com mais frequência que as primeiras. O motivo é claro: os colecionadores, vendo o fim de carreira do pintor e o que ele está produzindo, retêm o que ele produziu de melhor e as obras primas somem do mercado.

A última fase desses artistas existe como se suas pinturas contivessem a verdadeira face da bela pintura de outrora, mas agora elas são vítimas do tempo devastador. É o fenômeno comparável ao que ocorre com certas jovens que conhecemos no passado e que gradual e imperceptivelmente perdem sua juventude e beleza e, de repente, vemos que elas ou eles estão inteiramente mudados. Ainda os reconhecemos, é verdade, mas com diferentes e mais marcadas feições nas quais procuramos em vão por um lampejo do charme e beleza perdidos. Não faltam exemplos desta hipótese na vida pessoal de amizades de longo prazo, sobretudo se não envelhecemos juntos, nem em obras de grandes pintores consagrados: Renoir nos seus últimos trabalhos beirava a vulgaridade; Braque caiu em armadilhas de pequenas confusões; Derain afundou-se no convencional; Salvador Dali tornou-se apenas um fabricante em série do que ele chamava de arte, pensando em dinheiro com tanta intensidade que, maldosamente e já em 1938, André Breton fez de seu nome os cruéis anagrama e apelido de Ávida Dollars; Kandinsky repetia-se a si mesmo sem cessar e De Chirico era incapaz de imitar-se a si mesmo. É nesta fase que a vida demonstra ser pouco generosa com o pintor e altruísta com o escritor e/ ou o compositor.

Admiradores de certos pintores ficam perplexos de ver seus trabalhos se afundando na baixa qualidade e perguntando por que alguém da família não protege a obra do pai, do tio ou do avô. Preferem deixá-lo destruir sua imagem de grande artista com enorme produção sem valor algum. Há casos nos quais os familiares forçam o parente pintor a se levantar mais cedo que o habitual apenas para ele ter mais tempo para produzir mais, enriquecendo seus herdeiros e empobrecendo seu legado. E nem são somente os familiares e pressionar o artista a produzir mais e pior. Marchands natural e comercialmente e preocupados com suas vendas insistem com novos pedidos, pressionando o pintor a fazer o que ele não consegue mais. Por certo, todos precisam ganhar a vida, mas presume-se que o artista que chegou à longevidade tenha patrimônio ou renda para garantir sua subsistência sem precisar trabalhar com tanto afinco.

Para evitar constrangimentos dessa natureza, todo pintor deveria fazer o que fez o consagrado artista Arcângelo Ianelli. Ao longo de sua vida, ele separou vários quadros de diferentes fases, tamanhos, cores, técnicas, todos de alta qualidade e mantidos pela família. Alguns ele não vendia por preço algum. Durante sua existência, nunca precisou pedir emprestado trabalhos pertencentes a colecionador para participar de retrospectiva: grandes e numerosas obras-primas estavam guardadas em seu próprio atelier. A sua última retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo em 2002 foi composta de quadros exclusivamente da família. Ianelli tinha consciência de seu valor e sabia da importância de seus trabalhos e considerava as vendas importantes, mas o dinheiro estava longe de ser o principal. O artista que não manteve um acervo de suas próprias obras e está no fim de carreira é visto pela família como uma máquina de fazer dinheiro que perdeu o poder de produzir e que, a todo custo, deve funcionar em tempo integral com o restante da força que ainda lhe resta. Nada mais destrutivo a médio prazo para sua carreira.

Quem não conheceu os trabalhos deles do passado e vê os novos sem o vigor, a vitalidade e a beleza dos anos da juventude e os compra cai numa espécie de provocada e inconsciente armadilha pictórica, perceptível depois quando vê as primeiras obras e registra a enorme diferença de qualidade artística entre os períodos de vida e de produção. Nada mais frustrante para o colecionador e nada mais constrangedor para o marchand, cobrado posteriormente pelos seus clientes. O artista, jovem ou velho, precisa produzir e viver de seu trabalho e aguardar quem o reconheça e o compre, mas, assim como outras atividades profissionais, há um momento no qual ele precisa e deve parar, caso contrário corre o risco de ser (re)conhecido pelo que deixou de melhor e de pior.

por Carlos Perktold
psicanalista e crítico de arte. Integra a ABCA, AICA e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras  | ANO 87º – Volume LVI – 2010