Se alguém for à Turquia e havendo possibilidade, não deixará de visitar Éfeso, a fascinante cidade antiga, que faz recordar os nomes de Artemisa (o templo de Artemisa foi uma das sete maravilhas do mundo antigo), de São João e Maria, mãe de Jesus, que atraem o interesse dos cristãos em todo o mundo.
Éfeso se localiza na parte ocidental da Ásia Menor, também conhecida como Anatólia, à distância de seis quilômetros do Mar Egeu. O apóstolo João viveu e morreu em Éfeso, mas o visitante encontrará ainda a casa em que teria vivido a Virgem Maria, descoberta por visão de uma monja alemã.
A cidade esteve abandonada e esquecida, mas as buscas nas ruínas revelaram a antiga grandeza e a importância de outrora. Descrever sua história faz recuar tanto no tempo, que se perde num manancial misterioso. Em 334 a. C., Alexandre Magno a libertou do jugo persa. Mas esteve, ainda, sob domínio do Egito e da Síria, até o ano 190 a.C., quando passou aos romanos, tornando-se o mais representativo centro comercial da província na Ásia.
O terceiro concílio da Igreja cristã foi ali celebrado, na igreja de Santa Maria, com presença de 200 bispos para ali transportados por ordem do imperador Teodósio. A grande discussão era se a Virgem Maria era mãe de Jesus ou de Deus.
São Paulo e São João viveram em Éfeso. Aquele ali permaneceu cinco ou seis anos, proclamando e propagando a nova religião; o segundo passou lá os últimos anos de sua vida quase centenária, escreveu parte do Novo Testamento, e morreu. Sua tumba se situa na colina de Ayasoluk, numa igreja construída pelo imperador Justiniano, um magnífico monumento da época medieval, que resiste à inclemência do tempo, dos cataclismos e das intempéries.
Depois da paixão de Cristo, Maria deixou Jerusalém, e teria morado no lugar denominado Panaya-Kapulu, perto de Éfeso, num vale coberto por florestas, onde ainda existe a sua casa, sendo aceita a versão de que São Paulo sabia o local. Uma linha de historiadores admite a “Dormitio Ephesian”, ou seja, que a “dormição” (de Maria) foi em Éfeso. São João conduzira a mãe de Jesus à cidade da Ásia Menor, onde ela viveu seus últimos dias.
A cidade, de fato, muito tem a ver com Maria e com o cristianismo. A primeira missa oficial da Igreja foi oficiada ali, assim como lá se construiu a primeira basílica em louvor à mãe de Jesus.
Mas Maria, de fato, morreu? Eis a questão. O tema não escapou à dissertação de mestrado da historiadora mineira Sabrina Mara Sant’Anna “A boa morte e o bem morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandade mineira (1721 a 1822)”. Seu trabalho foi apresentado ao Departamento de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais- área de concentração-História Social da Cultura, tendo como orientadora a profª dra. Adalgisa Arantes Campos, em 2006.
A primeira afirmação da dissertadora é que nas Sagradas Escrituras não há relato sobre a morte e a assunção da mãe de Jesus, temas surgidos no Oriente e difundidos, desde a patrística, pela tradição geral, por fontes apócrifas, pela liturgia e pela arte.
A “morte” e assunção corporal da Virgem são registradas como Dormição (Dormitio) e Trânsito (Transitus). O momento final é um simples sono (o corpo foi poupado de corrupção), e o segundo corresponde ao conjunto- morte e assunção ou, simplesmente, à assunção.
Sabrina Mara observa: “Os estudiosos do assunto, em geral, consideram que a carência de informações neotestamentárias sobre o desenlace da existência terrena da Virgem propiciou o nascimento de lendas do imaginário cristão, que foram difundidas, em princípio, através da tradição oral. Por essa razão, os textos dormicionistas e assuncionistas apresentam variações regionais de elementos e personagens, além de manifestarem crenças diferentes”.
Simon Claude Mimouni, analisando 62 relatos apócrifos, estabeleceu três “grupos doutrinais”: 1) “Dormição sem ressurreição”, afirmando a morte de Maria. O corpo, poupado da corrupção, foi enterrado em um jazigo ou transportado para um lugar, preciso ou não, com sua alma transladada aos céus até a Ressurreição dos Mortos. 2) “Dormição e Assunção”, revelando fatos comuns aos dois tipos de crença; 3) Compreendendo textos que admitem a “Assunção” com ou sem “Ressurreição”. Nele se inserem os escritos que declaram a mortalidade de Maria (sepultamento, reunião do corpo com a alma, e assunção) e os que consideram sua imortalidade (corpo e alma foram para o céu sem passar pela tumba).
O tema é fascinante e a dissertação excelente. “A liturgia, respaldada na religiosidade popular, instituiu como verdade a assunção corporal de Maria, antes mesmo da teologia formular os argumentos para sustentálo”. Nem tudo fluiu como água da fonte. Epifânio de Salamina (315-403) exortou os fiéis a refutar a tradição oral, e afirmou que o modo como se deu o fim terreno da Virgem e o destino de seu corpo eram mistérios divinos e não poderiam ser descritos devido à ausência de dados bíblicos.
Eis que Nestório, bispo de Constantinópla, falecido em 451, apareceu para defender a tese de que existiam duas naturezas e duas pessoas em Cristo. Maria não era mãe de Deus (o incriado), mas genitora do homem Jesus (instrumento da divindade da Terra). Assim, a Virgem devia ser chamada de “cristotokos”, mãe de cristo, e não “Theotokos”, mãe de Deus.
Entretanto, antes mesmo da fundamentação teológica, surgiu em Jerusalém a “Festa da Assunção”, com grande êxito no Oriente desde a segunda metade do século V. No Ocidente, a celebração se deu a partir do século VII. As transformações políticas, econômicas, sociais e culturais naquela parte do mundo, nos séculos XII e XIII, consolidaram a fé no “Trânsito” da Virgem. A Igreja ia absorvendo as necessidades de nova ordem, convidando os fiéis a “plena responsabilidade individual, em progredir passo a passo para a perfeição, segundo George Dubay.
O II Concílio de Lião, em 1274, responsabilizava cada alma por atos e iniquidades em vida, reforçando o recurso à intercessão dos santos e da Virgem, glorificada pelos moribundos que pressentiam a chegada da morte.
Antes, era Céu-Inferno: depois, surgiu com a concepção especial do purgatório, a expressão trina do Além, resultante do II Concílio de Lião. Admitia-se a ida ao “Juízo Particular”. Atribuía-se a cada alma atos de iniquidade em vida e assegurava julgamento e sentença, imediatamente após o falecimento, robustecendo a intermediação dos santos e da Virgem. A iconografia dá conta das transformações ocorridas. Cristo aparece como juiz no centro da cena.
No século XIII, apareceu a avaliação das almas pelo Arcanjo São Miguel e a mediação de Maria e de São João Evangelista.
A “Legenda Áurea”, do dominicano Jacopo de Verazze, divulgou no Ocidente o texto assuncionista atribuído a João, o Evangelista, sobre o tema mariano, e as homilias de São Cosme, do arcebispo Germano, de Constantinopla, de Dionísio Areopagita, de São Damasceno e de Santo Agostinho.
As grandes desgraças contribuíram para um novo estado de espírito. Entre elas, a “peste negra”, que assolou grande parte da Europa. Tangido dolorosamente, o homem sentiu de perto o fim, e também o exemplo da Dormição e Assunção de Maria. Sua morte, tida como simplesmente sono, inspirava os fiéis a vencerem com serenidade e contrição o final indesviável.
Ou seja: “A elevação da alma e do corpo da Virgem aos céus transmitia aos cristãos a convicção da vida eterna, transformando o trânsito entre a “Jerusalém Peregrina” e a “Jerusalém Celeste” em um desejável e incomparável gozo”.
A crença chegou à Península Ibérica e ao Brasil. As gravuras da “Ars Moriendi”, com exortação à aceitação da morte e a intercessão aos santos, fortaleceram a convicção de que os justos teriam Boa Morte, como a da mãe de Jesus. Clérigos medievais e da época moderna ensinavam que os que vivessem dentro da orientação ética do cristianismo não tinham o que temer.
Os quadros da “Ars Moriendi” em Minas Gerais foram levantados pela autora, que percorreu Minas Gerais em todos os rumos. Na Capitania das Minas, o culto à Dormição e Assunção de Maria foi oficialmente instituído no primeiro quartel do século XVIII. Foi quando irmandades eleitas com vocação a Nossa Senhora da Boa Morte começaram: a primeira, em 1721, na freguesia de Antônio Dias, de Vila Rica.
Essas irmandades tiveram papel relevante, não se cingindo à religião. Tem razão a dissertadora: “No contexto das Minas, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte desempenharam relevante papel sócio-pio-político, porque funcionavam como agentes da caridade cristã, prestaram assistência material e espiritual a seus confrades, contribuíram para o desenvolvimento do culto santoral, incentivado pelo “Concílio de Trento” (1545-53) e reiterado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” (1707), e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando e utilizando os serviços de entalhadores, policromadores, santeiros e músicos.
Além das atividades supracitadas, comuns a todas as confrarias e Ordens Terceiras com oragos diversos, as associações leigas vocacionadas à Dormição da Virgem exerceram importante função litúrgico-pedagógica, pois propagaram doutrina da Comunhão dos Santos, ajudando os oriundos e seus familiares a aceitarem, com resignação a realidade da existência humana: “porquanto és pó e em pó te tornarás” . “Por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens, elas transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma boa morte para os justos”.
Mutatis mutandis, a impressão se assemelha à de João Camillo de Oliveira Torres. Para ele, as irmandades conjugaram esforços para criar em Minas Gerais uma civilização pluralista e cristã, de grande esplendor. Se se considerar unicamente a contribuição das irmandades para o movimento artístico de Minas e para integrar as populações de cor na sociedade, somente isto já seria suficiente para justificar o interesse que todos os conhecedores do passado mineiro lhes dedicam, muito embora ainda não se tenha escrito o livro que merecem.
A dissertação em causa ajuda a preencher a lacuna e a fazer justiça.
por Manoel Hygino dos Santos
Jornalista e escritor. Ocupa a cadeira nº 23 da Academia Mineira de Letras. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 87º – Volume LVI – 2010.