A SAGA DO CAMINHO NOVO, de Benito Barreto percorre toda a história da Inconfidência Mineira e de seus personagens.  É importante caminhar nela devagarinho, para usufruir da escrita personalíssima, forte e surpreendente, além de permeada com muita poesia.

O escritor e acadêmico Ângelo Oswaldo  comentou com maestria, ao mencionar, sobre o primeiro dos quatro volumes – OS IDOS DE MAIO -, “a diluição do sonho mineiro dos conjurados de 1789”. O autor da Saga “enfrenta o terremoto que se seguiu à denúncia”, “recompõe os itinerários da gente ensandecida pela opressão e arrastada pelo delírio da liberdade”. Ali reencontramos personagens conhecidos nos livros de História, principalmente os poetas e suas musas, além de figuras em parte ficção ou trazidas à tona pela extensa pesquisa que dá densidade à SAGA, como o Zidoro (depois Izidora) e Montanha, o irmão Lourenço, o padre Inácio transformado em Gerônimo. Emerge também como algo terrível a masmorra onde ficou Tiradentes.

Na dedicatória do segundo volume – de BARDOS E VIÚVAS, um “Tributo a Minas, meu chão, e aos bardos de Vila Rica, nossos gloriosos irmãos, dedico, todavia, este livro, sobretudo à beleza e bravura da mulher inconfidente”. Dele também comentou Ângelo Oswaldo: “Somos testemunhas dos fatos e compartilhamos com o narrador os seus segredos, comprovando, na emoção da leitura, a autenticidade do relato no epicentro da saga”. Desta parte da leitura ficam vívidas as figuras de João Costa/Benvinda, José Basílio e tantos garimpeiros que se envolveram na luta sem encontrar um líder que os conduzisse no projeto inconfidente, ao lado das “viúvas”, mulheres aguerridas, corajosas, inconformadas com a paralisia do movimento abortado. Não foi à toa que o escritor e acadêmico Luís Giffoni aponta na Saga uma minissérie televisiva: o roteiro está pronto, as falas cada personagem no “dialeto” da classe social do personagem, a mímica descrita. Emocionantes  as palavras que descrevem as horas mortas de Vila Rica. “E, dado o que doem e o luto que vestem, não parece que passem, como é de regra o tempo passar, mas, ao contrário, que, mortas, se enterram, cheirando, por isso, o tempo, a velas e velórios, e a seu turno, parecendo valas comuns e covas rasas, jazigos ou, mesmo, esquecidos mausoléus as casas, os sobrados, ao longo das praças, ruas e ladeiras da Cidade, visto que desoladas como o são, nos campos santos, as vielas das tumbas. (…) pranteando-as no dobre dos carrilhões chorando sobre a nudez das casas.” A gente pode ver, morta-viva, essa Vila Rica devastada pelas prisões de seus poetas e, principalmente, emudecida diante de tanto terror. De certa forma a narrativa aponta certa fragilidade nos ideais dos homens inconfidentes e a fortaleza de suas mulheres, talhadas com maestria nos diálogos e descrições da saga.

Mais uma vez o prefácio de Ângelo Oswaldo capta o espírito da cena armada em TOQUE DE SILÊNCIO EM VILA RICA. Trata-se evidentemente do “terceiro movimento da grande sinfonia em que Benito Barreto envolve a inconfidência mineira, transformado no maestro que conduz os andamentos ora a tons sombrios e sinistros, ora a serenas e breves fugas ou alegros logo rompidos pelo dobre severo de lúgubres sinos”. Quando fala dos diálogos entre Vicente Mota e João Rodrigues de Macedo. “Ecoam pela formosa casa dos contratos reais (…) as árias mais terríveis do concerto”. Estão ali urdidos os meandros do poder, o jogo das decisões e disputas. Outro toque único, que percorre a saga, são os títulos dos capítulos, pinçados das frases. Um exemplo: “O pensamento e os sentimentos se lhe acendem e apagam com a fugacidade dos vagalumes pelo quintal da casa”. Com Claudio Manoel morre a derradeira esperança de que pudesse ele deixar de “esconder-se de si mesmo e do que deve, nos porões da morte”.

Finalmente o movimento final da sinfonia: DESPOJOS: FESTA DA MORTE NA CORTE, talvez o momento onde a ficção mais se fez presente. Não podemos imaginar como teriam sido apurados os meandros do caso do padre Rolim com a cunhada La Tosca, o estratagema de Izidora para salvar seu povo, as estratégias de guerrilha armada de A BATALHA DO BREU. O tema musical deixa os metais e tímpanos, dando voz às cordas: muda o narrador em UM PÁROCO NA CORTE, onde Padre Inácio volta à cena e se sente cada vez mais envolvido no enredo principal, inclusive vivendo pela primeira vez uma paixão.

Cresce também, retomada, a reflexão sobre a noção de pátria, de país, de independência, mesclando a teimosa resistência de Tiradentes e a recusa do pedido de perdão. O improvável encontro entre Ana Mariana e Perpétua… Quando enfrentamos os tenebrosos momentos de A FESTA DA MORTE tudo acontece num fôlego só. Terrível  imaginar a solidão de Tiradentes e a frustração diante do silêncio dos seus fracos e pusilânimes companheiros de luta pela inconfidência, acompanhar o cortejo e os detalhes macabros armados para ensinar ao povo a lição da derrota. Não há como desviar os ouvidos dos acordes finais da narrativa.

A SAGA DO CAMINHO NOVO mostra, com riqueza de detalhes, os “diversos sotaques mineiros”, como lembra João Amílcar Salgado, os personagens humanizados, os sentimentos vasculhados em minúcias: uma lição de vida.

 

 

Por Flávia Queiroz