RESENHA: O LIVRO DE CARLINHOS BALZAC

Desde o prefácio das “Memórias secretas” – assinado pelo dr. Daniel D’Arthez, presidente do Círculo Literário do Mercado Financeiro Carioca – até o posfácio apresentado por Vitório Magno, amigo de infância do personagem principal da autobiografia “ O livro de Carlinhos Balzac”, paira a dúvida se Carlos Antônio Meirelles de Figueiredo Rocha realmente existiu. A narrativa – situada predominantemente no Rio de Janeiro a partir da década de 1960, quando Carlinhos, por indicação de seu tio-padre, apresenta-se no escritório da Corretora Maxim’s DTVM, de propriedade do Doutor Francisco José – tem inúmeras conexões com pessoas conhecidas, instituições reais e fatos históricos, além de pitorescos relatos de perambulações pelas ruas do centro da cidade e passeios memoráveis, quando a riqueza produz cenas cinematográficas. 

“O fato é que o doutor Francisco José fez muito mais do que me dar um emprego: fez-me beneficiário do Milagre Econômico iniciado no fim dos anos 1960 e prolongado pela década de 1970” – diz o narrador da autobiografia. Entretanto, os malabarismos em seu relato dos acontecimentos vivenciados ou imaginados, as inúmeras coincidências e a apresentação de personagens ora burlescos, ora dramáticos, descritos com profusão de detalhes, constantemente comparados com atores e atrizes do cinema Hollywoodiano, têm algo de intrigante, uma entonação que soa como ficção habilmente entalhada num cenário verídico. O uso constante de diálogos na reprodução dos episódios confere ao livro uma prazerosa leveza.

Carlinhos Balzac ganhou este apelido pelas freqüentes referências ao escritor francês, notável por suas agudas observações. Mas recita ou recorre a supostas leituras por não ser capaz de compor, com idéias próprias, comentários ardilosos? Esta pergunta sempre ocorre ao leitor. Outras vezes declara ironicamente suas limitações, em frases como “Pensamento do dia: foram as mulheres dotadas de um espírito perscrutador mais apurado que o dos homens. A frase é minha, mas Balzac deve tê-la escrito com os ornamentos de estilo. A primeira cientista da Humanidade foi Eva, não há dúvida, movida pela curiosidade de conhecer o sabor do fruto da árvore proibida. Essa frase também saiu agora, mas se encaixa em Balzac”. 

A profusão de referências a livros e autores que habitam as prateleiras da biblioteca do tio-padre insinua uma falsa erudição, deixa entrever uma permanente tentativa de exibir o hábito da leitura – uma incerta cultura forjada mais nas orelhas dos livros do que em suas páginas. Ele mesmo confessa: “Com a proximidade de nossos locais de trabalho, tornei-me freguês do seu Ricardo, pela sua simpatia, lhaneza e vasto conhecimento de livros obtido por meio de capas e orelhas mais do que pelo miolo, método afinal adotado pelo autor destas memórias. Aliás, penso em dar a elas o título de Obituários fluminenses. É machadiano, não? Vou pegar de surpresa o Vitório, metido a ser machadiano!” Frequentemente Carlinhos Balzac inclui notas de rodapé na narrativa, como a buscar confirmação da veracidade de suas lembranças:

“Lembrei-me, agora, ao reler esse obituário, que a primeira providência de Balzac ao introduzir um personagem era descrevê-lo fisicamente. Farei melhor: economizo palavras e remeto o leitor ao Google para clicar em “Cary Grant”. É o Francisco José sem tirar nem pôr.”

O perfil de um dândi aparece, em Carlinhos Balzac, desde o início: “Considero-me democrata, mas até hoje não abandonei a ojeriza às massas. Minha mãe, professora de História no curso ginasial, dizia que eu padecia “do mal da classe dominante do Brasil”. Quando ia ao Maracanã, ela me dava dinheiro para comprar cadeira numerada. – Vai, príncipe! Por algum tempo esse foi o meu apelido familiar”.

Obituário é palavra chave na autobiografia, como se os relatos fossem sempre póstumos, prenunciando a morte antes da publicação. Outra expressão que percorre toda a narrativa é uma dúbia exclamação “– Ah! Antigas ligações de família. E mais de trinta anos depois, o filho dela explicando sua situação de sócio do colégio: – Ligações de família com o antigo proprietário.” Sempre insinuando um segredo a ser mantido.

“Aprendi tudo de Bolsa com o doutor Francisco. Primeiro, como secretário pessoal, depois como operador de pregão. Não fui o principal operador de sua corretora, mas o seu queridinho. Dizia-se: – O Carlinhos é o enfant-gaté do Francisco José. Inveja pura.” “Bons tempos em que Francisco José era o Chico Águia e o mercado entoava a partitura ditada pelo meu patrão e amigo, isto é, dobrava-se diante dele”.

Carlinhos Balzac submetia-se a todo tipo de conchavo para dar guarida aos passos velados do patrão e mentor no mundo dos negócios. Inúmeros casos extraconjugais, aventuras amorosas e incertas viagens de negócios de Francisco José, tudo era escamoteado com a falsa presença do pupilo e aliado, mas dava a este a oportunidade de participar de reuniões e almoços de negócios, quando conhecia personalidades importantes na cena política, econômica e editorial do Rio de Janeiro nas décadas de 1960, 1970, 1980. Aliado a isso o tom maledicente:

“Tudo o que tenho escrito ou venha a escrever sobre mulheres ocorreu antes do meu casamento, sempre adiado, a pedido de Francisco José, temeroso de perder o seu companheiro disposto a tapar o sol com a peneira. Nenhum raio fugidio jamais iluminou a figura encapuzada do meu saudoso Don Juan. Entrei para a Faculdade de Direito por um motivo secreto: ter o horário noturno das aulas dedicado ao Don Juan do casco viejo carioca. O pretexto do segundo diploma foi o de seguir os passos do economista Vitório, que também ia voltar para a faculdade para diplomar-se em Direito, o que lhe foi proveitoso mais tarde para ganhar o doce encargo de interventor na caderneta de poupança que faliu fraudulentamente, a Marvel. Mais tarde, adiei o casamento por causa da licenciatura em Matemática, oficialmente para poder dar aulas no Educandário Robespierre, mas ocultamente pela mesma razão de ser o espadachim de Francisco José. Assim, só fui me casar aos trinta e sete anos.”

Alguns capítulos exploram o escorregadio território da contravenção disfarçada em negócio, de escusas ligações entre personagens fantasiosos, maculam reputações e insinuam histórias mirabolantes, reforçando a idéia de que Carlinhos Balzac sabia muito sobre o que não deveria ser contado, daí sua importância estratégica para as ligações de Francisco José, tecendo para essas memórias um contexto de perigosas tramas e duvidosos relatos. 

Outra importante aquisição dos perdulários negócios escusos apresentados nas memórias é a tipografia Ao Prelo de Ouro que Carlinhos Balzac supostamente teria comprado, para ajudar a esconder as verdadeiras intenções do padrinho Francisco José. Ao dar a notícia ao tio-padre, “Ele deu-me os parabéns. Mas se interessou não pela impressão de calendários para paróquias, talonários para bicheiros, convites de casamento e propaganda de mercados. Seus parabéns eram destinados a um inexistente futuro impressor de livros: – Um sobrinho no negócio de livros! Isto sim é uma atividade culta, civilizatória, que engrandece o ser humano – regozijou-se, esfregando as mãos com intensa alegria.” 

Muitas vezes Carlinhos Balzac se vale de estratagemas para revelar bastidores de seus personagens e não pede a oportunidade de pisotear a amizade com Vitório: “Uma pena a mesa do almoço do tio-padre não contar com a presença do invejoso Vitório para que ele pudesse saborear essa novela…” Em outro momento Vitório volta a ser desqualificado: “Humberto de Campos falava muito mal dos outros e fazia vista grossa àquela boutade de procedência francesa, segundo a qual se todos soubessem o que uns falam dos outros, não haveria quatro amigos neste mundo. Seja como for, a inveja campeia no mundo. Não veem o Vitório? Inveja-me demais da conta! Em Campos, vivia me seguindo à sorrelfa, na livraria Ao Livro Verde (uma das mais antigas do Brasil), para saber qual romance de aventura da coleção Terra, Mar e Ar da Companhia Editora Nacional eu comprara para o meu deleite”.

Mas é no posfácio da autobiografia que o amigo de infância Vitório Magno, bacharel em Direito e em Ciências Econômicas, finalmente diretor geral do Educandário Robespierre, alvo das mais capciosas indiscrições do autobiografado, tem a possibilidade de vingar-se e questionar reputações dos personagens pintados por Carlinhos Balzac com cores dissimuladas pela hipocrisia, revelando ligações espúrias, personalidades truculentas e colocando em dúvida a veracidade da narrativa. 

 “Como o leitor soube no prefácio, Carlos Antônio Meirelles de Figueiredo Rocha partiu para a eternidade. Foi no final de 2020, ceifado pela pandemia. Faltou-lhe fôlego literário para terminar o livro e, nos pulmões, fôlego para enfrentar a Covid-19. A viúva, Beatriz, sabendo que sou o mais antigo amigo de seu marido, resolveu entregar-me os originais para a composição de um obituário do marido, a fim de ser publicado na revista do mercado financeiro carioca.”

“Redigi o perfil solicitado pela revista do Círculo Literário do Mercado Financeiro e resolvi dar à publicação as confissões de meu amigo de infância, pois Carlinhos, vaidoso, assim o desejaria, mesmo arrostando as implicações de ordem moral na vida íntima das pessoas citadas e até mesmo as implicações capituladas nas leis que tratam de injúria, calúnia e difamação. Cumpro a vontade dele, a mim transmitida por Beatriz. E, como que homenageando o autor, dei os originais à impressão pela Gráfica Novo Progresso, cuja história está intimamente associada a Carlinhos, sucessora que é da tipografia Ao Prelo de Ouro”.

Flávia de Queiroz