Oscar Araripe

Por JG Heleno

 

Oscar Araripe sempre falou de flores – “Tudo que pintei foram cósmicas paisagens de flores magnetares” – como ele afirma no catálogo da exposição Flores para Harvard em
abril de 2019. De olho em seus quadros, é impossível negar isso, como é inevitável uma volta aos anos de chumbo de 1968, quando foram apresentadas ao público as “flores” de
Geraldo Vandré. Numa canção em que o cantor invocava todas as forças para se contraporem à ditadura militar, as flores eram o pretexto, como expressa o próprio título
“Pra não dizer que não falei de flores”. Ao contrário, ou complementarmente, as flores em Oscar Araripe foram sempre sua arma predileta, não obstante os rigores com que a
mesma repressão que caíra sobre Vandré tenha atingido também Oscar Araripe, que sofreu censura, cassação, ameaças e riscos próprios daquele tempo hostil às artes, em especial às que envolvem a palavra.

A arte de Oscar Araripe nunca deixou de ser fiel àquelas posturas juvenis de resistência a qualquer forma de censura. Os traços de seu pincel de hoje são a continuação de suas
pinceladas literárias. Quando seu quadro esconde hoje o evidente, a explicitude das figuras ou atos representados, ele está retomando as estratégias existenciais dos tempos
da repressão. Isso fica bem mostrado na trilogia formada pelos títulos Maria na terra de meus olhos; Marta, Júpiter e Eu; e Eu, Promeu, o que amazoneu (inédito). Em Maria
na terra de meus olhos (1975), os ecos de 68 se encontram muito visíveis, bem como as estratégias para driblar as ameaças de então. O clima de insegurança e tensão é a
constante, como numa cena cuja descrição sugere uma sessão de tortura, por exemplo, ou, alhures, no extremo confuso do espasmo e do orgasmo. Algumas vezes, “pixeis” são
aparentemente lançados meio a esmo, por serem necessários para a “cor local” que assiste o todo da narrativa; da mesma forma como acontece em seus quadros de pintura.
Em sua persistência, as flores tomam muitas formas para não parecerem o que de fato são: armas. Podem tomar a forma da liberdade do pássaro diante da repressão policial,
ou do alívio de poder respirar, ou do vislumbre de um horizonte sem linha, ilimitado, mesmo em espaços opressores. O pássaro pode sempre estar no voo livre do pálido
menino.

Antônio Houaiss, com muita perspicácia, ao discorrer sobre o livro Maria na terra de meus olhos, se detém especialmente na linguagem inovadora e algumas vezes tendente a
expressar o não-dito para que o leitor chegue, por si mesmo, ao dito. Houaiss chega a ver a existência de conotações que dispensam “o núcleo semântico básico” e a
“referencialidade”. Com esse aspecto provocativo de uma linguagem não convencional, o processo narrativo realiza uma sacudidela no leitor, e se põe na defesa da própria
linguagem diante da repressão à arte.

Transcrevendo trecho do jornal Correio da Manhã, Zuenir Ventura lembra que a fúria censória chegou a proibir, em peças teatrais, palavras como “gorila, vaca e galinha”. A
literatura de Oscar Araripe se insere nesse contexto de oposição ao empobrecimento da língua imposto pela censura. O escritor reage, então, além de outros procedimentos,

com a estruturação não convencional das frases e do texto em seu todo, e com a criação de neologismos.
Na forma de uma carta afetiva a Oscar Araripe, o prestigiado teórico da literatura, Eduardo Portella, começa reconhecendo em Maria na terra de meus olhos, um livro que
não deve ser lido de maneira apressada. Não se trata de uma obra para uma leitura comum, porque ela não é uma obra comum, ele afirma. Recusando-se a falar da
linguagem aí usada, ele se propõe a falar a partir dela. A partir dessa linguagem, e não sobre ela. Às vezes, o texto se dá como estilhaços, continua o crítico; outras vezes se
cala. E conclui que o livro não é para ser entendido a um primeiro olhar. Para sublinhar o sentido libertário da narrativa poética de Oscar e sua função de arma contra a
repressão e contra o sufocamento da expressão, ele encerra sua crítica com a frase do próprio Araripe: “Todo menino ama os pássaros e odeia a polícia”.
(ARARIPE, Oscar. Maria na terra de meus olhos. Rio de Janeiro: Rocco, 1975, 146 p.)