A fome de João Benévolo
Vera Lúcia de Oliveira
João Benévolo morreu como a cachorra Baleia, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos. O mais correto seria dizer que Baleia morreu como João Benévolo, pois este, personagem de Caminhos cruzados, de Érico Veríssimo, apareceu primeiro, em 1935, enquanto Baleia, de Vidas secas, em 1938.
As duas personagens morreram de fome. João Benévolo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e Baleia, na caatinga, no Nordeste. As duas personagens representam o espírito da época de 1930, talvez a mais
trágica do século 20. No Sul ou no Nordeste do Brasil a mesma fome. Érico e Graciliano romancearam a vida que eles viram, a vida desigual dos ricos e pobres. Não precisa dizer que foram criticados, acusados de denegrir a imagem do país, na temível Era Vargas. Érico, após a encantadora Clarissa – meio Emília do Sítio do pica-pau amarelo, de
Monteiro Lobato, meio Lolita, de Nabokov – só para fazer uma aproximação psicológica – dá um salto em direção às vanguardas utilizando o contraponto neste segundo romance Caminhos cruzados, como já o fizera André Gide, Virgínia Woolf e Aldous Huxley, na observação do crítico Antonio Olinto. Essa semelhança com a técnica do
contraponto ocorre apenas na superfície, “pois (as obras) diferem em natureza e qualidade”, segundo Veríssimo.
Em Caminhos cruzados, romance de grande profundidade humana, a ação dura cinco dias, de sábado a quarta-feira, cinco longos dias em que tudo acontece. No entanto, os dias parecem ter duração diferente, pois enquanto os ricos dormem fofo e profundamente, fazem festas e se divertem, os pobres contam cada minuto na angústia da chegada do dia seguinte, mais um dia sem pão, sem remédios, sem trabalho e sem esperança. Novo dia, nova desesperança.
Em determinada passagem da narrativa, a bondosa e alienada dona Dodó, em seu lauto almoço de aniversário, pergunta ao Monsenhor Gross: “Por que há ricos e pobres?” O Monsenhor não responde; apenas encolhe
os ombros e “intimamente só sabe que o peru está delicioso e o vinho é
velho e generoso.” Mas o marido de Dodó, Leitão Leiria, responde:
– Existem pobres porque Deus, na sua infinita sabedoria, quis experimentar os homens. Deu dinheiro aos ricos para ver se eles no meio da opulência não esquecem os desgraçados. Deu miséria aos pobres para ver se eles no meio da sua desolação sabem guardar os seus santos mandamentos. Aí está. Ao que a filha replica que existem pobres porque homens ricos como o seu pai “gastam mais do que deviam, e querem ganhar mais do que precisam.” Vidas cruzadas, ideias cruzadas.
Em meio aos caminhos cruzados de meia dúzia de famílias, ricas e pobres, nossa atenção recaiu sobre a família de João Benévolo. Homem pobre, desempregado, casado com Laurentina, pai de Napoleãozinho, menino doente que vive na cama, seu campo de batalha, sua Waterloo. Bastaria, no entanto, essa família para Érico Veríssimo criar um rico conto, uma novela ou um forte romance. Mas esse é apenas um dos núcleos da narrativa. O que comove especialmente nessa família é o contraste entre a dureza da realidade, da pobreza em que vivem, contando apenas com o dinheiro de costura da mulher e a aviltante ajuda de um antigo apaixonado de Laurentina que visita a família, deixando sempre algum dinheiro, que tanto ajuda quanto humilha, jogado sobre a mesa. Mas por que João Benévolo aceita essa situação? Aceita porque lhe falta energia para a luta pelo pão; porque vive em outro mundo, no mundo dos livros, da literatura, da fantasia. Para ele, a vida é sonho. Viaja nos livros, vira navegante, aventureiro, conhece o mundo inteiro em sua poderosa imaginação. A fome o faz olhar vitrines de comidas deliciosas enquanto o estômago reclama gemendo. A fome não desiste, nem o sonho. João Benévolo poderia ter inspirado o poeta Campos Lara de O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa, obra de 1938, como Vidas secas. João Benévolo viveu de sonho como esse poeta e morreu sonhando como Baleia. Baleia que, em seu delírio final, morta de fome, vê o mundo cheio de preás, gordos,
enormes. E morre satisfeita “com a cabecinha fatigada sobre a pedra.”
João Benévolo ainda tem esperança: ouviu dizer que no Brasil ninguém morre de fome. Sai de casa resoluto: vai procurar trabalho. Mas a sua natureza de cigarra não resiste ao dia lindo – o sol brilha e o faz esquecer as dores e necessidades. Assobia o “Carnaval de Veneza”, música alegre, cheia de entusiasmo, sua favorita. Cruza com pessoas na rua, segue sua caminhada sem rumo, levado apenas pelas lembranças de infância, já se vendo menino, como que ouvindo vozes antigas. Que importa se o estômago dói? Ou é o coração que dói apertado por essas
lembranças? A realidade o chama de volta e ele se dá conta de que é um pobre-diabo morto de fome que não consegue sustentar a família. Passa da realidade novamente à fantasia e viaja pelas florestas virgens da
África… Agora, “João Benévolo tem a impressão que criou asas e anda voando. Uma dor contínua no estômago, fome, cabeça oca, moleza no corpo.” Sempre o maldito estômago. E as vitrines do restaurante cheias de
empadas, croquetes e perus dão o golpe de misericórdia no pobre homem. Uma maldade! Fraco como a cachorra Baleia, “tem mentalmente o festim do Rei Baltazar”, diz o narrador. Invisível, “Parece que ninguém
me enxerga”, cruzando sempre com as pessoas na rua, como se andasse na contramão, continua a sua marcha. Para onde? Nem ele sabe. Porém, certo de que alguém lhe daria um prato de comida, segue em frente. “Brasileiro tem bom coração”, pensou.
Érico Verissimo, nesse romance de protesto, como afirmou, leva o leitor pela mão com João Bénevolo, sua fome e sua esperança – a última que morre – ao limite da emoção. Como não se comover com o drama desse brasileiro que insiste em acreditar mesmo quando tudo está perdido? Mas agora está cansado… Vontade de esquecer que tem mulher, filho, dívidas. Caiu de mansinho no chão e “a última impressão que ele tem antes de perder os sentidos é o contato gelado das pedras.” Como Baleia. Por pouco não atrapalhou o tráfego.
Nesse dia, Laurentina viu o relógio da sala parar. Stop. Um lindo dia de sol é um bom dia para morrer.