SAMUEL  RAWET  NO  SEU  LABIRINTO

                                                                             Danilo  Gomes

 

                   Há 37 anos morria em Brasília, dramaticamente, o escritor Samuel Rawet. Mais especificamente em Sobradinho. Solitário, de ataque cardíaco, aos 55 anos de idade.

                   Ele nasceu em 23 de julho de 1929, na aldeia de  Klimontow, na Polônia, de pais judeus. Nome completo: Samuel  Urys Rawet.   Chegou ao Rio de Janeiro aos 7 anos de idade e foi morar com a família nos subúrbios (Ramos e depois Olaria),  passando infância pobre.  “Aprendeu português como poucos brasileiros”, escreveu Napoleão Valadares no seu  Dicionário de Escritores de Brasília , já em 4ª edição. Formou-se em Engenharia. Integrou a equipe de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa,  Joaquim Cardozo  (também poeta, e dos bons), Carlos  Magalhães da Silveira  ( recentementre falecido em Brasília, aos 88 anos, ex-genro de Oscar  Niemeyer). Trabalhando com o pernambucano Joaquim Cardozo, Samuel Rawet fez inúmeros cálculos para edifícios de Brasília. Assim, o engenheiro e já contista famoso ajudou a construir a nova capital do Brasil, saga comandada pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.

                  Foi contista, novelista, teatrólogo e ensaísta.

                 Em 1956, Rawet publicou seu livro de maior sucesso, Contos do imigrante . Livro doloroso, angustiante, como foi e como seria a vida do autor, que rompeu com  o judaísmo e a família. Há um clima de Dostoiévski  e um  travo  de  angústia de Kafka em seus contos e novelas. Aqui em Brasília ele se tornou “O Solitário Caminhante do Planalto”, título de uma entrevista que fiz com  ele para o “Suplemento Literário do Minas Gerais” ( então dirigido pelo saudoso Wilson Castelo Branco ) e que depois publiquei no meu livro Escritores brasileiros ao vivo, entrevistas, vol. 1, Ed.Comunicação/ INL, 1979. Essa entrevista de 1976  está mencionada na bibliografia sobre o escritor, no livro  Contos e novelas reunidos, de Samuel Rawet, editado e prefaciado por André Seffrin, com “orelhas” de  Flávio Moreira da Costa.

               Tive a honra de escrever um longo prefácio para o volume Dez contos escolhidos de Samuel Rawet, da  Editora Horizonte, de Brasília, por recomendação do crítico literário Almeida Fischer. Esse  volume é de 1982.  Em 1997, Ézio Flavio Bazzo publicou  um livro sobre o autor polaco-brasileiro, Rapsódia a Samel Rawet.

              Samuel  Rawet foi um escritor  criativo, inovador, sensível, culto, eu diria mesmo genial, como o atestam os que se  debruçaram sobre sua sofrida obra de “judeu errante”, sempre  exilado, irrequieto.  Flávio Moreira da Costa o incluiu na antologia Os 100 melhores contos  de crime e mistério da literatura universal  e  Ronaldo Cagiano deu-lhe destaque na sua  Antologia do conto brasiliense.

                                                        ***

                Conheci-o em Brasília quando aqui cheguei, em março de 1975, vindo de Belo Horizonte. Em 1976, meu filho mais velho,  Rodrigo, tinha quatro anos de idade e frequentava o jardim de infância na SQS  303. Eu o levava à escola quando minha mulher não podia fazer isso.  Ali, nas imediações, algumas vezes me encontrei com o escritor, naquelas claras manhãs, pois ele, de bermuda, passeava pelas quadras próximas, morador que era  de uma delas, acho que a  105  Sul. Batíamos um rápido papo. Estava sempre alegre, risonho. E passava a mão, num gesto paternal, na cabeça  do menino Rodrigo. 

                Eu encontrava Rawet também nas reuniões da Associação Nacional de Escritores- ANE, então sediada na 415  Sul. Ele era associado. Cordiais  conversas. Entrava  na roda da cerveja. Em geral, Rawet  não  demonstrava amargura, tristeza aguda, isolamento. Ele tinha momentos de alegria, confraternização, convivência.Mas nós o sabíamos um prisioneiro da melancolia e mesmo da revolta. Ele devia sentir-se, talvez, um “poète maudit”, na sombria linha de Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud. Gostava, sim, da solidão. No extinto caderno “Pensar”, do “Correio  Braziliense”, de quase 20 anos atrás, li um ótimo ensaio  que sobre o ficcionista escreveu  Stefania   Chiarelli, então doutoranda em Estudos de Literatura na PUC-Rio. Ela assim sintetizava a vida do famoso  prosador: “errância, exílio, isolamento.”

                Num  almoço  na casa da escritora Branca  Bakaj e seu marido, o arquiteto Mário Bakaj, em 2004, o poeta Cassiano Nunes nos disse: “Samuel Rawet foi uma figura trágica, vangoghiana.” Os dois eram muito  amigos. E já não pertencem a este  mundo.

                Ele buscou a solidão para morrer. Nos últimos anos de vida, apresentava sinais de distúrbios mentais, acentuados desequilíbrios de comportamento, mania de perseguição, procura de imaginários culpados para umas tantas mazelas. Entrou num mundo de paranoias. O “judeu errante”, o ser humano cheio de conflitos, o autor “maldito” e automarginalizado, rebelde, neurótico. Morreu em 25 de agosto de 1984. Foi encontrado depois de vários dias da ocorrência  do  óbito, em  Sobradinho, DF.

                 De sua bibliografia, constam estes livros: Contos do imigrante, Diálogo, Abama, Os sete sonhos, O terreno de uma polegada quadrada, Consciência e valor, Viagens de Ahasverus à terra alheia, Devaneios de um solitário aprendiz de ironia, Alienação e realidade, Eu, tu e ele, Angústia e conhecimento e, ainda, Que os mortos enterrem seus mortos. 

                Prefiro me lembrar dele nas nossas animadas  conversas regadas a cerveja, na então sede da ANE. Prefiro me lembrar dele de bermuda, alegre sob o sol brasiliano, nas manhãs  daquele ano de 1976, afagando a cabeça do meu filho, hoje com 49 anos. Carinho que ele talvez não tivesse tido quando menino na sua Polônia natal. E no Rio. O que talvez tenha ajudado a marcar sua dolorosa angústia pela vida afora…

                                                                          Brasília, junho  de 2021.