Relações campo-cidade: entre a
agroexportação e a soberania alimentar
Patrus Ananias*
A produção agrícola brasileira sempre priorizou a exportação e não o atendimento às necessidades da população.
O nosso modelo econômico, sempre voltado para o mercado externo, durante quase quatro séculos, fundou-se na escravidão, na concentração das terras e das rendas — no latifúndio. Não criamos o nosso mercado interno que só emerge muito timidamente a partir do século passado.
A Lei de Terras em meados do século XIX assegurou os privilégios dos grandes proprietários e penalizou os pequenos posseiros.
A concentração das terras rurais em mãos de poucos estendeu-se à propriedade urbana.
Não realizamos as três reformas básicas que asseguram a função social da propriedade e das riquezas: as reformas agrária, urbana e tributária.
A revolução de 1930, que abriu algumas portas para o desenvolvimento econômico do Brasil, não tocou nessas três reformas fundamentais, no sentido de exigir um justo retorno daqueles que mais ganham e possuem dentro da sociedade.
O desenvolvimento econômico não se fez acompanhar pelo desenvolvimento social, da mesma forma que não acolheu, no nível devido, a questão ambiental.
A partir dos anos 1930, a questão social e, dentro dela, o desafio maior da fome, encontrou progressiva acolhida nas artes e na cultura brasileira. Romances como Vidas Secas de Graciliano Ramos, os quadros belíssimos e tormentosos de Cândido Portinari, as obras de Josué de Castro — Geografia da Fome e Geopolítica da Fome. Vieram depois os poemas de João Cabral de Melo Neto — Morte e Vida Severina. Tivemos em tempos mais recentes as campanhas memoráveis de Herbert de Souza, o Betinho, do Natal Sem Fome e do acesso a todos os direitos de cidadania.
Antes de chegarmos ao governo da República, o Partido dos Trabalhadores e o presidente Lula, pautamos o desafio do Fome Zero, ou seja, zerar, extinguir a fome e a desnutrição do Brasil. Implantamos na Prefeitura de Belo Horizonte as políticas de segurança alimentar.
Compromissos bem cumpridos também no plano nacional com a implantação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pelo qual fui responsável, onde se encontraram as políticas de transferência de renda, o programa Bolsa Família; as políticas de assistência social e as políticas públicas de segurança alimentar, através das ações de apoio à agricultura familiar e implantação de restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos; ações voltadas para a alimentação nas escolas públicas. Políticas e obras públicas foram implantadas para o acesso à água nas regiões do semiárido, por meio do programa de cisternas e pequenas barragens.
Os avanços foram notáveis, integrando ações de apoio à agricultura familiar como o PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar; o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar; o PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar.
Tivemos a implantação dos CONSEA – Conselho de Segurança Alimentar nos planos nacional, estadual e municipal com as respectivas conferências.
Ainda em 2006, para que essas políticas superassem a dimensão de políticas temporárias de governo, para se configurarem como políticas permanentes de Estado, aprovamos a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional — LOSAN, que instituiu o Sistema Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional — SISAN, como ambiente institucional de articulação entre o poder público e a sociedade civil organizada para formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações capazes de assegurar o direito humano à alimentação
adequada. Na mesma linha, em 2010, aprovamos a Emenda Constitucional nº 64 que introduziu a alimentação como direito social no art. 6º da Constituição.
As políticas voltadas para a soberania alimentar do povo brasileiro e o desenvolvimento da agricultura familiar se encontraram e se articularam muitas vezes com as políticas públicas referentes à educação, à saúde, à moradia, á cultura, ao meio ambiente.
A FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – retira o Brasil do mapa da fome em 2014. Uma conquista histórica!
Não obstante os avanços notáveis que tivemos no confronto com a exclusão social, a miséria, a desnutrição e a fome, o direito de propriedade — que entre nós continua sendo um direito absoluto e sem limites, fundado nos princípios liberais do século xix — e os ganhos extorsivos do grande capital não foram objetos de regulamentação jurídica que os subordinassem às exigências superiores do direito à vida, do bem comum, do projeto nacional brasileiro.
O golpe que afastou a presidente Dilma Rousseff veio inflado dos paradigmas do ultra neoliberalismo, do Estado mínimo, do fim das políticas públicas embasadas nos direitos fundamentais presentes na nossa Constituição da República e nos princípios da justiça social e do bem viver.
Iniciou-se a operação desmonte com a Emenda Constitucional 95 que congelou o Brasil por vinte anos, cerceando os investimentos sociais em todas as áreas, inclusive nas políticas de segurança alimentar e de apoio à agricultura familiar.
A insegurança alimentar, a desnutrição, a fome voltam a marcar trágica e crescente presença junto às famílias, comunidades, regiões do Brasil. Cresce de forma assustadora o número de pessoas vivendo nas ruas e praças das cidades, a mendicância. Pessoas, famílias, comunidades inteiras que perderam tudo.
Neste contexto adverso, ainda marcado pela tragédia humana e social da COVID, colocam-se as perguntas de sempre: o que fazer? como fazer? com quem fazer? Como retomar os trabalhos de base, alargar corações e mentes, disseminar o conhecimento e informações corretas?
O desafio é grande, histórico. Confrontamos dois adversários. Um mais visível, perverso, dominado pelos impulsos e desejos de violência e da morte. É o presidente da República e seu entorno familiar e pessoas insensíveis ao sofrimento dos pobres e incapazes de dialogar, de respeitar as diferenças e os diferentes, de construir consensos e possibilidades compartilhadas.
O outro adversário é um pouco mais civilizado. Alguns deles são capazes de ouvir, de conversar, de preservar — pelo menos formalmente — valores e práticas democráticos e convivenciais. Mas adoram também o novo bezerro de ouro dos nossos tempos — o deus mercado. Estão também possuídos pela ideologia neoliberal, do privatismo, do Estado a serviço dos interesses do capital, do dinheiro.
Penso que nessa conjuntura adversa e desafiadora é fundamental preservarmos e difundirmos o princípio norteador de que a alimentação plena e saudável é um direito fundamental, como fizemos incluir na nossa Constituição. Marca ainda forte é a ideia que vincula a alimentação à boa vontade das pessoas, à caridade, à esmola.
Queremos sim uma sociedade solidária, fraterna, amorosa. Mas não podemos submeter a alimentação, condição primeira para o direito à vida, primeiro degrau da escala da nacionalidade e da cidadania, ao humor e à boa vontade dos que possuem.
O passo seguinte, a meu ver, é vincular o direito à alimentação a outras políticas públicas e direitos fundamentais que, de forma articulada e complementar, criem as condições para a emancipação das pessoas, das famílias, das comunidades; criem as condições para a emancipação do povo brasileiro, a nossa causa maior!