POESIA FEMININA
Yeda Prates Bernis
Estamos vivendo um tempo de violência em todos os sentidos. Precisamos de ar puro e um pouco de poesia neste ar rarefeito.
A poesia, segundo Octavio Paz, “é conhecimento, salvação, poder e abandono”. O poeta é mediador entre sua obra e o leitor trazendo beleza, filosofia, denúncia e amor.
O homem conquistou a lua, adquiriu técnicas esplêndidas mas tem se esquecido, sempre mais, do amor e do respeito entre seus iguais.
Achei por bem oferecer aos leitores desta revista um pouco de poesia escrita por mulheres brasileiras, sem juízo de valor na escolha, já que o Brasil possui uma constelação de autoras excelentes.
Espero que nesta modesta leitura os leitores possam respirar o perfume mais sutil da alma humana.
Por ordem cronológica tentarei apresentar algumas vozes cujas temáticas vão da espiritualidade ao canto telúrico, o amor, a morte e ao grito contra a violência.
A mulher, em geral, é um termômetro de sensibilidade em alta vibração.
Começarei por Cora Coralina, rara flor nascida nos ermos de Goiás.
Oração do Milho
Introdução ao POEMA DO MILHO
Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das
lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem
lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Boaz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão
do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam
a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja
dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos
paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que
amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus
ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
Henriqueta Lisboa, mineira de Lambari, percorre a vida e os sentimentos humanos com rara lucidez e poesia.
Um poeta esteve na guerra
Um poeta esteve na guerra
dia a dia, longos anos.
Participou do caos,
da astúcia, da fome.
Um poeta esteve na guerra.
Por entre a neve e a metralha
conheceu mundos e homens.
Homens que matavam e homens
que somente morriam.
Um poeta esteve na guerra
como qualquer, matando.
Para falar da guerra
tem apenas o pranto.
Cecília Meireles, natural do Rio de Janeiro, canta o instante e o eterno.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.
Lacyr Schettino de Mar de Espanha-MG, com temas de amor e temas espirituais como o livro Santa Tereza de Jesus.
Soneto Do Amor Barroco
O triste encontro! E mais do que por ver-te,
saber perdido o tempo já de dar-te.
A ferida da rosa por rever-te.
A rosa da ferida por amar-te.
Ah, como se aquietava o sonho ao ver-te
à distância impossível para dar-te
o que dado seria, se rever-te
condição fosse de poder amar-te.
O triste encontro agora! pois perder-te
me fora um bem maior do que alcançar-te
e não te ver, melhor do que rever-te.
É que, perdido o zelo de buscar-te
e já submissa ao mando de perder-te,
eu não pensei que ainda pudesse amar-te.
A carioca Stella Leonardos dedicou-se à poesia lírica e aos cancioneiros sobre fatos históricos, cobrindo o Brasil com poesia.
A Orfeu
Na face de minha
estela
tua lira
resplandece
e me conta
das estrelas.
Dentro da estela
uma eurídice
te canta
– estrela elegíaca –
e chora
de um canto estreme.
Ensonho teus
idos traços.
E vais musicando
trácias
de traçado
pura música.
Meu sonho roça-te
a lira,
novicórdia,
novilírica,
do enlevo
de nove musas.
Tu que silenciaste
as feras,
os pássaros
e o mar fero,
silencias
minha pena.
Tu que comoveste
as pedras
e as raízes
sob a pedra,
comoves
o meu silêncio.
Zila Mamede de Nova Palmeira, Paraíba fez poesia clássica e moderna.
RETRATO DE MINHA MÃE COSTURANDO
A máquina move
bobinas fios
a máquina fixa
flor e atavios
Corra essa correia
de couro curtido
da roda ao pedal
como um desafio
Dance a inquieta agulha
em louco vai-e-vem
cutelo e fagulha
de calor, de bem
A máquina e
o veio:
Aranha a tecer
varizes inchadas
longo anoitecer
A máquina e
o tempo:
luz de lampião
pedal madrugada
cheiro quente: o pão
A máquina e
as linhas:
branco em carretel
chama de pavio
na fumaça: o mel
A máquina e
o berço:
filho vai nascer
perna pedalando
filha a adormecer
A máquina:
morna tessitura
de lençóis-colchões
dentes e cangalhas
presos nos mourões
A máquina:
texto-documento
na execução
de mortalhas: anjos
em azul de caixão
A máquina:
trapézio de infância
caos da adolescência
vestida sem rendas:
Lúcida indigência
A máquina:
lúdico artefato
de abstrato museu
(a avó, a bisavó)
do tempo hoje meu.
Hilda Hilst, poeta paulista de Jaú.
A Federico García Lorca
Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.
Renata Pallottini de São Paulo, poeta intimista, lírica e metafísica.
A Morte
Com teu manto solene
imantada da morte
foste por um momento
o centro; e és agora
folha dentro do livro,
demarcada memória,
uma dor tão doída
que nem ao menos chora;
campo de crisântemos
sob o sol do estio;
rio de mil lâmpadas
que a luz desferiu,
paço aonde flâmulas
o Rei conduziu…
Onde soam cânticos
Sob o sol do estio.
Lina Tâmega Peixoto, mineira de Cataguases, elegância e singularidade na poesia contemporânea.
Vigília
Como dormir
se permaneço atenta ao zelo e alento da alma
como se ela fosse uma flor em vigília
a buscar a parecença do sol nas pétalas?
O ar é limpo, recém-lavado de sonhos.
A cama é uma nova pátria
onde me deito de lado
sobre as palhas da esperança.
O corpo é uma verdade inconclusa
um frêmito da escuridão
em alguma parte do quarto.
Durmo e durmo a veneranda insônia
que doce e mansa chega a madrugada
no trincar a noite
com o bater das pálpebras.
Adélia Prado, contemporânea, transforma o cotidiano em poesia.
Solar
Minha mãe cozinhava exatamente:
Arroz, feijão rouxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.
Astrid Cabral poeta de Manaus, com extensa poesia diversificada.
Poesia
Corola de som
desabrochando
entre lábios.
Desenho de dedos
entre punho e palma.
Flor de palavra
brotando do vasto
chão da alma.
Lenilde Freitas, nascida em Campina Grande, Paraíba. Poesia marcante.
Poema Redutível A Uma Única Palavra
Do profundo,
do mais profundo poço
faço leito.
E deite e deitarei aí com muito jeito
meu coração de monja
quase puro.
Do escuro,
do mais escuro vão
recolho o que em mim morrer recusa.
Por fim, já meio reclusa,
procurarei antecipar-me ao lodo que serei.
E sem ter nada, nada mesmo que me impeça,
se um fio de vida ainda me resta,
forca farei. Daí em diante, quem me recomeça?
Maria Lúcia Simões de Belo Horizonte, Minas Gerais, poeta lírica, por excelência.
Em silêncio percorri a neblina do tempo
e de sombra colhi tua presença
e eras tão leve assim feito de brisa
e tão distante assim desfeito em nuvens
que eu fechei os meus olhos
para ver-te.
Elizabeth Gontijo de Belo Horizonte, Minas Gerais, poeta lírica com traços espiritualistas.
AGENDA
Singro o tempo indivisível
e tento, em vão, nortear a viagem.
Terça-feira:
Pela manhã, mercado central.
Vago entre ruídos
e quase perco a saída.
Aporto em banca de unguentos…
Sexta-feira:
O chão encerado reflete a grafia incerta de meus passos.
Divago com favos e abelhas.
Às três horas, dentista.
Um alento: posso morder a maçã.
Beiro, insabida, o insano.
Domingo:
Dia da graça.
_ Maria, coça minhas costas?
Na nostalgia da costela repartida,
Adão, de novo,
me pede para ser Eva.
Flávia de Queiroz Lima, carioca residente em Minas. Sua poesia viaja o quotidiano com lucidez e sensibilidade.
TANTOS VENTOS
Avança o vento ligeiro pelo roteiro do acaso
embaralhando o destino que a cigana leu nas cartas.
A sorte esculpe seu jogo no mapa da mão,
marcado,
como quem move fantoches num tempo incerto,
sem datas.
Semeia o vento a desordem na memória remexida,
hesitando entre movê-la ou deixar no esquecimento.
Quem sabe seu sopro intenso,
vagando cego nas trilhas,
varre as sobras dos fantasmas caídos nas armadilhas?
Passeiam ventos alheios ao descompasso dos sonhos
deslizando,
sonolentos,
entre espantos e receios.
Adivinhando segredos nas cenas feitas de sombras…
passam deixando na fronha um resto de pesadelo.
O vento nos desconcerta quando atravessa o caminho,
trava as naves, sopra as velas, atropela, desafia.
Simulando tempestades em rotas desfiguradas,
desmantelando disfarces
desmascara as fantasias.
O vento sempre sacia a sede de alçar-se longe.
Seu vago rumor ressoa quando a incerteza interpela:
será que a resposta mora no colo da paciência
ou se arremessa no impulso do pincel riscando a tela?
Relendo este meu texto verifiquei que há uma grande lacuna entre as poetas brasileiras, por não conhecer Marly de Oliveira à época em que escrevi este trabalho. Achei por bem, por questão de justiça e para não falhar com esta grande poeta já falecida, trazer seu nome para enriquecer meu trabalho.
Nascida em Cachoeiro do Itapemirim no Espírito Santo e falecida em 2007 no Rio de Janeiro, Marly foi professora de Língua, Literatura Italiana e Literatura Hispano-Americana no Brasil e, casou-se em segundas núpcias com João Cabral de Melo Neto.
Para ilustrar sua obra, apresento um poema seu, dentre muitos outros publicados pela poeta.
RETRATO
Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.
Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.
A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.
Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.
De Cerco da Primavera (1958)