Não tiveram filhos, aposentaram-se cedo no serviço público, planejaram ficar de papo para o ar até o último dos dias, em vingança contra os anos de ditadura do relógio. Para preencher as longas manhãs, mantinham o olho na internet, em busca de notícias. Depois, liam seis jornais. A princípio, apenas os da cidade. Como a leitura não durava até o almoço, começaram a comprar todos os que a banca da esquina vendia. Tampouco ficaram satisfeitos. Passaram a assinar diários e revistas de capitais distantes, do Brasil e do exterior, puseram-se a par de assassinatos na periferia de Macapá ou das infindáveis animosidades entre árabes e judeus. De vez em quando, ele levantava os olhos acima das lentes para comentar:
– Você viu, querida, os mortos da covid no Irã passam de três mil.
– Três mil, quinhentos e noventa e um – ela o corrigia, com o gosto pela exatidão de quem chefiara uma seção de estatísticas oficiais.
– Tem jornal dizendo que chegam a quatro mil ou mais – ele se defendia.
Seguia-se uma hora de silêncio, trespassada apenas pelo ruído das páginas que folheavam ou dos cadernos atirados ao chão da varanda onde o sol os aquecia.
– Você viu, querida, morreram mais de trinta de covid neste fim de semana no Rio.
– Trinta e dois.
– Te peguei! Foram trinta e quatro. O levantamento do jornal é das nove da noite. Mais dois morreram no hospital hoje. Está na internet. Acabei de ver.
Durante o almoço, um sentimento de vazio os atingia. Era como se cortassem o cordão umbilical com a realidade, pesadelo contornado pela televisão. Comiam depressa, a fim de logo se postarem defronte à telinha.
– Ótimas essas imagens do médico morrendo de covid. Viu como faltou ar?
– Preferi as do terremoto. Aquele menininho chorando ao lado da mãe esmagada então…
Faziam a sesta, dando tempo ao mundo para acontecer mais um pouquinho e chegar até eles. Acordavam às três em ponto, hora dos noticiários na tevê a cabo.
– Não mudou nada desde o almoço.
– Teve o anúncio do recorde de mortos nos Estados Unidos.
– 40 mil, né?
– 41683 – ela triunfou.
Naquela noite, veio a enchente, verdadeira tromba-d’água. A casa ficou inundada, paredes e muros ruíram, carros saíram flutuando pela rua. Os dois aposentados viveram momentos de pavor. Perderam até a televisão. Só melhoraram quando a repórter os entrevistou. Entusiasmado com a perspectiva de virar notícia, ele sugeriu:
– Vai naquele prédio ali, moça, que você vai fazer uma tomada e tanto. Tem mais de uma dúzia de carros empilhados lá.
– São treze, querido. Contei enquanto éramos resgatados.
Ao saber que iriam ao ar dali a uma hora, pediram ao vizinho ao lado, menos atingido pela enchente, permissão para ver as imagens. Sentiram-se realizados quando apareceram na tela.
– Você ficou bem, querida. Parece atriz de cinema.
– Você também, amor.
– Será que estamos nas tevês do mundo inteiro?
– Tomara. Vamos procurar?
Esquecidos de que não se encontravam em casa, passaram a noite em busca de si mesmos numa centena de canais. Desculpe, cento e doze.