No contexto da sofisticada obra de Machado de Assis, especialmente os seus melhores contos (John Gledson selecionou 50 contos, Companhia das Letras) e os cinco últimos romances, Memórias Póstumas de Brás Cubas talvez ocupe um lugar especial. Digo talvez porque as grandes obras e os grandes autores comportam diferentes leituras do mesmo leitor em diferentes contextos existenciais e históricos.
Brás Cubas nas suas reminiscências que transcendem o tempo de sua existência terrena apresenta um duríssimo retrato da realidade brasileira do século XIX, marcas e registros de uma época que não foi plenamente superada e que projeta as suas sombras sobre os nossos dias. Bem previu Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (Minha Formação, Ed. Universidade de Brasília).
Roberto Schwarz, no seu instigante ensaio sobre o sentido histórico da crueldade em Machado de Assis contido n´As ideias fora de lugar (Penguim/Companhia das Letras), elabora sobre as desigualdades e injustiças sociais a partir da relação de Eugenia e Brás que “vivem um curto idílio campestre, ela filha natural de Dona Euzébia, uma solteirona que frequentava a casa dos Cubas em condição inferior, ele o moço abastado…” Além da tragédia social e humana da escravidão, o Brasil já formava a multidão dos que eram aparentemente livres e pobres. A relação amorosa entre Eugênia e Brás não floresce na elaborada leitura de Schwarz, não por conta do defeito físico da moça – Eugênia era coxa – mas por razões de ordem socioeconômicas. A limitação física foi o elemento que emergiu para camuflar a razão de fundo: o desnível de classe. Voltemos a este ponto bem levantado por Roberto Schwarz quando tratarmos do conto Pai contra Mãe.
Considero, entretanto, que a denúncia mais incisiva na obra-prima machadiana incide sobre a escravidão que é, a rigor, uma das causas principais do grande aumento da pobreza entre nós e do brutal distanciamento entre as classes sociais – a minoria dos que tudo possuem e a crescente maioria dos que muito pouco ou nada tem. Fiquemos, então, com as palavras do próprio personagem – Brás Cubas está fazendo, pós-vida, uma auto-crítica de sua precária e vazia existência:
“ …um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício deitei um punhado de cinza no tacho, e, não satisfeito com a travessura fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos.”
Machado de Assis, através de reminiscências de seus personagens, começa nos dando uma boa lição pedagógica: as crianças vivem e praticam os valores, ou antivalores, que assistem e partilham no mundo dos adultos. Assim emerge, no contexto familiar, a perversidade infantil de Cubas, sempre referenciada na escravidão:
“Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo –, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: ‘cala a boca, besta!’”
Passaram-se os anos, a escravidão persiste. Prudêncio cresceu e foi alforriado pelo pai de Brás Cubas, ganhou algum dinheiro e logo comprou um escravo que era a prática. Se tivemos os escravos que lutaram brava-mente contra a escravidão, que se organizaram e resistiram nos quilombos, existiram também aqueles que interiorizaram a prática de seus senhores, introjetaram o opressor e suas práticas. Assim, eis que Brás Cubas vinha, “por aquele Valongo afora”, pensando o espaço que conseguira para seus encontros amorosos e clandestinos com Virgília; eis que se depara com um ajuntamento: “era um preto que vergalhava outro na praça”. As palavras e os gestos são importantes pela violência e pela reprodução de expressões passadas:
“— Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!
Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma ver-galhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor!, gemia o outro.
— Cala a boca, besta!, replicava o vergalho.
Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!”
Essas situações tão bem expostas nos repõem de imediato as reflexões oriundas das variadas áreas do conhecimento – filosofia, sociologia, história, pedagogia, psicologia, antropologia – que abordam sobre diferentes, mas convergentes ângulos, a temática desafiadora do oprimido que introjeta o opressor e o adota como modelo e referência.
Os detentores do poder econômico que muito bem se articulam, quando não se apropriam direta ou indireta-mente através de prepostos dos poderes político, cultural, militar, dos meios de comunicação, sabem com muita competência impor à sociedade como se fosse um bem público, um valor comunitário, regras e procedimentos que constituem única e exclusivamente a manutenção e o alargamento dos seus interesses e privilégios. É a dominação ideológica. Foi assim com a escravidão: os escravocratas, os que ganhavam muito dinheiro com o trá-fico, os grandes proprietários rurais impuseram à sociedade, pela força da manipulação ideológica, a convicção de que os negros eram incapazes de se autodeterminarem; se livres iriam beber cachaça e promover desordens, a escravidão era necessária para eles, eram seres inferiores, enfim. Eram muito fortes na época, e refletem, ainda hoje, as concepções perversas de superioridade e inferioridade de raças. Muitos escravos acreditavam nessa impostura. Como hoje tantos pobres que atribuem a sua pobreza aos seus próprios limites e incapacidades ou à vontade de Deus.
Essas reflexões sobre os mecanismos de dominação do ser humano sobre o seu semelhante encontram boa acolhida entre nós nas obras e práticas educativas de Paulo Freire, especificamente na Pedagogia do Oprimido (Ed. Paz e terra) e em experiências culturais e teatrais que levaram ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Na perspectiva do colonialismo, nações pretensamente superiores que dominam nações consideradas inferiores, encontramos as mesmas reflexões na obra de Albert Memmi, Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador (Ed. Paz e Terra).
- admirável e alarga a nossa autoestima nacional brasileira quando constatamos que Machado de Assis antecipou a esses estudos e os faz presentes nas reflexões de Brás Cubas. É uma passagem antológica na forma e no conteúdo:
“Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca no raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das panca-das recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição; agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”
Vemos aí as sutilezas que perpassam os territórios não sabidos do inconsciente.
A escravidão continua martelando a sua presença em outros momentos das lembranças póstumas do personagem. Lembra conversas que ouvia na infância sobre o tráfico negreiro, negócio altamente lucrativo que abria as portas para os títulos de nobreza e que mobilizava assim grandes interesses:
“Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra em que…
Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros , pelo menos.”
Machado de Assis, além de mergulhar fundo nas questões sociais, na crueldade e desdobramentos da escravidão, sem jamais ceder a tentações panfletárias, desce também às profundezas ambíguas e contraditórias do ser humano.
“… o contraste dos interesses, a luta das cobiças, obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo.”
Assim como um torturador de prisioneiros indefesos pode voltar para casa e acolher com afeto a sua família e passar por ser um cidadão de bem, um torturador de escravos pode, à luz dos valores sociais dominantes, justificar os seus procedimentos mais cruéis. Dizem e justificam a si mesmos que agem em nome das exigências do tempo, da insubordinação dos escravos, da paz social. Uma análise mais atenta do texto machadiano nos faz entender que subjacente à pretensa justificativa dos procedimentos brutais contra os escravos está presente a crítica mais refinada e sutil. Vejamos como através da leitura já agora confidente e contrita de Brás Cubas, ele avalia o comportamento de Cotrim:
“O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.”
Emerge no texto citado uma interrogação sempre presente nas pessoas que acreditam nas possibilidades dos avanços éticos e civilizatórios; na emergência e expansão dos valores e práticas vinculadas à justiça social, ao bem comum, ao exercício dos direitos fundamentais; na construção da paz fundada nesses princípios e procedimentos. Coloca-se a pergunta: por onde começam os trabalhos vinculados aos desejos de construção de sociedades que atendam os melhores sentimentos humanos? Devemos começar pela reforma das consciências, o aperfeiçoamento das pessoas individualmente consideradas, a conversão individual de que fala o melhor da tradição cristã; ou considerar primordialmente a mudança das estruturas de poder – econômica, política, social – que condicionam, em boa medida, o comportamento das pessoas?
Machado de Assis, observador atento, perspicaz e muito bem alicerçado no conhecimento de obras e autores que transcendem os tempos e que foram fundo nas indagações sobre o ser humano na sua dimensão individual e comunitária – penso aqui com especial carinho nos ensaios de Montaigne e na obra de seu fraterno amigo Etienne de La Boitie, Discurso da Servidão Voluntária –, Machado bem sabia das condicionantes que influem no comportamento das pessoas e na organização das sociedades. Bem sabia o nosso autor genial das contradições presentes nestas e naquelas. Nunca se propôs a ser um reformador. Mas desmistificava, sempre com elegante discrição e refinadíssima sutileza que escapa aos menos atentos, os desacertos individuais e coletivos de nossa frágil condição humana.
A escravidão, seguramente o maior ponto de interrogação da história do povo brasileiro, surge, mais uma vez, com uma intensidade quase brutal, dosada, no limite, pela genial contenção e profundidade do autor, no conto Pai contra Mãe. Obra-prima no entardecer do tempo machadiano. Começa com um surpreendente libelo contra a escravidão, bem temperado com a ironia finíssima que é uma das marcas registradas do nosso autor. A citação é longa, mas vale transcrevê-la. Quando se trata de um autor como Machado de Assis, é melhor e mais prazeroso ir direto à fonte. Dispensa interpretações.
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos se não por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. […]
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita e à esquerda, até o alto de cabeça e fechada atrás com chave. Pesa, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.”
As aparentes atenuantes não expressam, a meu ver, nenhuma concessão à instituição perversa, a radicalidade da crítica manifesta-se também através dos comentários aparentemente moderadores. Emerge aí, uma vez mais, a duríssima ironia de Machado, próxima ao sarcasmo, a crítica pelo inverso, a crítica através do próprio olhar do opressor.
Pai contra Mãe é a história de Cândido Neves, o Candinho, que sem profissão e lugar certos na vida, tornou-se pegador de escravos fugidos. Casou-se com Clara, que morava com a tia Mônica. Eram pobres. Viviam, como vivem os pobres, com muitas dificuldades. O negócio de caçar escravos que teve, do ponto de vista dos caçadores, bons momentos, estava em dificuldades crescentes. Aumentou a concorrência. Cresceram as carências familiares ampliadas com a chegada do filho. As dívidas cresciam, os credores pressionavam. A sogra, em face dos crescentes problemas financeiros, insistia na doação do filho. Cândido e Clara, pais amorosos, resistiam. Aumentavam as carências e os conflitos com a sogra. Decidiram-se pela entrega do filho. Candinho, já com a criança para fazer a doação, confrontou uma mulher. Identificou-a pelo anúncio que trazia uma jovem mulata escrava fugitiva. A recompensa pela entrega desta jovem escrava era alta. Candinho deixa o filho com o farmacêutico que lhe dera algumas informações sobre a mulher. Chamava-se Arminda. Estava grávida. Resistiu bravamente o quanto pôde. Voltemos às palavras do autor:
“Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e natural-mente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, – coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites. ”
Cândido, sem nenhuma compaixão, entregou Arminda ao seu proprietário. Recebeu a boa gratificação e, marido e pai amoroso, assistiu impassível ao aborto da escrava, “levada do medo e da dor”.
Pai contra Mãe coloca-nos o dramático problema das escolhas em uma sociedade em que convivem e conflitam a escravidão e a pobreza dos que são considerados livres. Aqui não é o escravo que introjeta o seu opressor
e quer ser igual a ele. Aqui é o pobre que é assimilado e para sobreviver serve à ordem social vigente. No contexto da escravidão e de uma ordem social iníqua ele, o pobre, é levado por fatores econômicos a submeter-se e dar sua colaboração ao sistema dominante. Ou colabora ou morre de fome ou entrega o filho. É um sistema em que, segundo o próprio Cândido, para justificar-se, “nem toda criança vinga”. Acossado pelas necessidades materiais básicas, pelo desejo de permanecer com o filho, Cândido faz a “escolha de Sofia” dentro dos limites que a sociedade escravocrata, opressora também dos pobres, lhe impôs. Entregara Arminda aos castigos cruéis do seu “proprietário” e à perda da criança que trazia amorosa no ventre.
Evidente que assim como existiam os escravos que resistiram, constituíram os quilombos e confrontaram os seus senhores e a ordem social injusta, existiram e existem os pobres; hoje a maioria são pobres negros, que também não se moldaram aos ditames dos “donos do poder”. Afrontaram e afrontam com imensa dignidade, com enormes perdas pessoais e familiares, as exigências impostas. Militam com coragem e determinação nos movimentos sociais. Entramos no campo dos heroísmos, dos mártires, dos santos.
Memorial de Ayres, o enternecido romance de despedida, traz algumas reflexões instigantes sobre a escravidão. O barão de Santa-Pia prefere alforriar os seus escravos antes que o Estado o faça. “Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.”
Emerge, vinculado à escravidão, outro tema delicado na história brasileira: o direito de propriedade, que continua sendo entre nós um direito absoluto, ainda nos moldes do direito romano: o direito de ter, usar e abusar a coisa. Direito sem limites. O texto machadiano evidencia mais uma vez que os escravos eram considerados como propriedade de seus donos. Tanto assim que um dos temas mais presentes nos anos, meses e dias que antecederam o 13 de maio de 1888, dizia respeito ao direito de indenização reclamado pelos proprietários de es-cravos pela perda de sua propriedade. A propriedade de escravos, propriedade sobre seres humanos, contamina profundamente o direito de ou, como seria melhor, o direito à propriedade entre nós: o Brasil nunca pôs em prática o princípio da função social da propriedade que remonta às origens da tradição cristã através das chamadas Padres da Igreja (“Deus distribuiu os bens da terra a todos os homens…”) e que está presente formalmente nas constituições brasileiras desde 1934. Nunca saiu do papel. Nunca realizamos as reformas sociais que promovem a convergência dos direitos individuais, entre eles o direito de ou à propriedade, com os direitos sociais, econômicos e culturais, acrescidos nas décadas mais recentes os direitos ambientais, difusos e coletivos, que conformam os direitos fundamentais bem presentes na nossa Constituição da República. Direitos que acolhem as exigências superiores e coesionadoras do direito à vida e das políticas públicas que efetivamente lhes dão suporte. Refiro-me às velhas e reclamadas reformas de base nunca efetivadas: agrária, urbana, tributária.
O tema, presente em nossos dias, não passou indiferente ao sábio do Cosme velho. O personagem machadiano quer, como tantos hoje querem, o Estado mínimo. Ele não admite o Estado agindo em nome e em sintonia com a sociedade para promover avanços e conquistas civilizatórias, o bem comum, o projeto nacional. A questão dos escravos, ‘’seres humanos impossibilitados de SER’’, para o barão era um assunto privado, uma questão de propriedade privada, nada a ver com a sociedade, com o Estado. Ademais ele tinha certeza, considerando os limites em que se deu a abolição, que os nossos antepassados escravos não foram objeto de nenhuma reparação, nenhuma política pública que lhes abrisse as portas dos direitos referentes à nacionalidade e à cidadania; que a questão, não obstante a Lei Áurea, continuaria no terreno privado, em face da omissão do Estado em garantir desdobramentos à lei. Ciente dessa realidade, o personagem ousa dizer, com a segurança dos coronéis ‘’donos de terra, gado e gente’’: ’’estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada – pelo gosto de morrer onde nasceram’’.
Considerando as condições em que se deu a abolição, apenas no campo formal, os ex-escravos não tinham para onde ir. As portas da inclusão e da cidadania permaneceram rigorosamente fechadas.
O contrário é a obra esplêndida de Machado: abre com genial estilo e elegância literária, acompanhada de re-finadíssimo senso crítico que, ora um pouco mais se explicita; mergulha, às vezes, nas entrelinhas, nos entretons das metáforas, dos pensamentos sutis que mais questionam ou sugerem em uma descrita linha montaigneana, mas, no limite, abre com delicadeza as portas para que melhor possamos compreender os limites, conflitos e mistérios da alma humana e as enormes ambiguidades e desafios que se colocam àqueles que querem melhor compreender os caminhos e descaminhos de nossa formação, a formação do povo brasileiro. Machado de Assis foi uma expressão muito singular, genial, discretamente iluminadora dessa caminhada de um povo em busca de sua identidade e independência. Com suas raízes profundamente brasileiras expressa na sua obra genial as grandes possibilidades do povo brasileiro.
Por Patrus Ananias, membro da Academia Mineira de Letras,
ocupante da cadeira n° 39.