Há expressões que, apesar de correntes, persistem em produzir dúvidas. Isso parece muito próprio de quando se ajuntam a substantivos de caráter universal, como é o caso de ‘literatura’, adjetivos visando a indicar recortes de espaço, tempo ou estilos. Como se pode com absoluta precisão dizer onde começa e termina a literatura modernista? O mesmo com relação à colonial? E o que dizer da literatura mineira? Basta um pouco de reflexão para que se conclua que são delimitações de precisão apenas relativa, que contudo têm o importante papel de possibilitar o reconhecimento de tendências no grande conjunto do que se tem por literário.
No momento em que se completam trezentos anos da criação da Capitania das Minas, a reflexão sobre o que implicam as denominações não deixa de ser pertinente. De início, a expressão “minas de ouro” não faz mais que dizer onde, depois de tanta procura, se encontrava o buscado metal, mas logo se converteu em nome próprio, quando, em 1709, foi criada a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, para dez anos depois ganhar autonomia e nomear a Capitania das Minas, a que logo se acrescentou a determinação de Gerais. Tanto no primeiro movimento, quanto no segundo e definitivo, o desenho do território se faz do outro lado do Atlântico, considerando o parecer do Conselho Ultramarinho e de outras pessoas de proa que atuam junto de D. João V, rei de Portugal, os quais “concordavam em ser muito conveniente a meu serviço e bom governo das ditas capitanias de São Paulo e Minas e a sua melhor defesa que as de São Paulo se separem das que pertencem às Minas ficando dividido todo aquele distrito”, de acordo com os termos do Alvará de 2 de dezembro de 1720. Tudo, portanto, em nome do serviço do rei, o que significa em nome do controle sobre as riquezas minerais. Daí o lugar não poder ter outro nome que Minas. Daí seus habitantes não serem outra coisa que mineiros.
Não é raro acontecer a passagem do comum para o próprio – recorde-se da Bahia e dos baianos –, mas nomes nunca são inócuos. Constitui uma marca o fato de que toda a capitania, como depois a província e o estado se digam Minas Gerais e seus habitantes mineiros, o que vale mesmo para áreas onde não houve nem há nada de mineração. E uma vez que “Minas são muitas”, não se trata de algo uniforme. A multiplicidade, aliás, impera desde o início, mercê da própria velocidade com que o território foi ocupado, provocando êxodo tanto de populações da própria América portuguesa, quanto de Europa e de África. Sabe-se como isso implicou na urbanização rápida das vilas do ouro, as quais, em seu apogeu um tanto efêmero, assumiam ares cosmopolitas. A 4 Alphonsus Filho na década de 1940 experiência de como vilas ricas se transformaram em vilas pobres e vice- -versa, no ritmo dos ciclos econômicos, forjou o sentimento de quem não recusou e manteve o gentílico de “mineiro”, com o fado que desde sempre carrega: a busca da riqueza a custo nada fácil, o assombro do encontro seguido da nostalgia da perda, a euforia de tudo de belo a par da disforia de inúmeros males.
Quando se fala de literatura mineira, o que importa perceber é como Minas se inscreve no amplo conjunto da literatura, enquanto uma experiência de mundo e de história sui generis. Ao reunir trabalhos sobre a literatura em Minas, de Minas e sobre Minas, este número do Suplemento Literário se propõe oferecer um vislumbre dos trezentos anos que se contam desde quando o território foi assim chamado, sem esquecer de que nele convergem mais que trezentos, procedentes de quando assim não era ainda nomeado. Não se pretende um levantamento exaustivo, mas a marcação de aspectos e momentos expressivos, de modo que a parte fale de algum modo pelo todo, na diversidade de vozes, lugares e temporalidades.
É esse todo que a organização do dossiê pretende refletir graficamente. De início, monografias sobre três poetas em tempos de passagem, da colônia para a província, em seguida, estudos temáticos sobre outros trânsitos, do império para a república, do popular ao erudito, da palavra escrita à cantada e espetacularizada, para desembocar em outros dois trabalhos dedicados à poesia de nós contemporânea. Nesse sentido, o dossiê pretende não só se voltar para o passado, como apontar para o futuro, em especial para o resgate de línguas, culturas e literaturas marginalizados desde a imposição iluminista do português e da tradição europeia como nosso único legado.
Atente-se apenas como era lugar comum, até a primeira metade do século vinte, afirmar a impossibilidade de fazer a história de índios e africanos em Minas, pela ausência de documentos, os quais, todavia se encontravam à espera do olhar dos pesquisadores em arquivos civis e eclesiásticos espalhados por todo estado, além de nos acervos brasileiros e portugueses. Baste recordar que o primeiro registro escrito da língua africana mina-jeje foi feito em Ouro Preto, em 1741, documento resgatado em 2002 por Yeda Pessoa de Castro. Luiz Fernando Veloso Nogueira, por sua vez, a partir de registros eclesiásticos, seguiu a trajetória familiar de Manoel e Eva, escravos que, na segunda metade do século XIX, viveram na freguesia do Divino Espírito Santo do Lamim. Das populações indígenas, diversas línguas e muitas culturas resistiram até a reversão, pela Constituição Federal de 1988, da proibição de que meninos e meninas, nas escolas, usassem “das línguas próprias de suas nações”, nos termos do decreto do Marquês de Pombal, de 17 de agosto de 1758. É de todo significativo, portanto, que a cidade de Bertópolis tenha aprovado recentemente a introdução do maxakali como segunda língua em todas as escolas do município.
Esses exemplos servem para dizer que, como as línguas e as culturas, a literatura mineira são muitas e é nessa diversidade que se encontra sua riqueza. Uma perspectiva que se espera, nos próximos trezentos anos, só venha a ser realçada e cultivada.
Texto publicado na “Edição Especial do Suplemento Literário de Minas Gerais” de Novembro de 2020.