“ O japiim é o garoto dos pássaros; o seu canto é irônico, galhofeiro e, às vezes, insolente. O sabiá cantava no miriti e um canto semelhante partia do meio dos japiins. O sabiá exasperava-se, sacudia frenético as asas e arrancava da garganta as suas mais belas notas. Dir-se-ia que no bando de japiins havia um sabiá, porque um canto idêntico, de notas tão belas, respondia ao cantor pousado na rama do miriti. E assim continuavam esse mimoso duelo à face da natureza.”
( José Veríssimo, no livro de contos “Cenas da vida amazônica”.)
“Os pássaros conduzem o homem para o azul,
para as águas, para as árvores e para o amor.”
( Manoel de Barros, no poema “Gratuidade das aves e dos lírios.”)
“O bem-te-vi pisa mansinho no vão da escada.
Os beija-flores, quais querubins, brincam- brincando de madrugada
sobre as torres de marfim.”
( Márcio Catunda, no poema “Água de flores”, do livro “Verbo imaginário”.)
-Alô, Ziza ! Está com tempo?
– Oi, Maria Rita ! Já sei, você voltou a sonhar com Guaporé. Outra vez, Maria Rita? Mas não é mais Guaporé, agora é Rondônia. Você insiste em Guaporé, criatura! E fale mais alto, que este telefone está meio esquisito.
– Melhorou agora? Para mim é Guaporé, como no nosso tempo. Com todo o respeito ao Marechal Rondon.
– Mais histórias. Lá vem você com seus sonhos. E ainda nem li os jornais de hoje.
– É, mas hoje é sábado e…
– Espere aí, vou buscar uma cadeira, aquela de palhinha, de balanço, que comprei naquele antiquário, disse o homem que era austríaca legítima, você se lembra? Austríaca legítima, pois sim!
– Alô, Ziza, escute, criatura. Dessa vez me vi diante de um grande rio piscoso e cheio de lontras, veados, maracajás, capivaras, antas, caititus, queixadas, cobras estranhas, grandes tartarugas…
– Coitados dos peixes!
– Não estou brincando, Ziza. Ora, com efeito!
– Eu é que estou caçoando.
– Uma paisagem linda, surrealista, parecia o Pantanal, mas era a Amazônia, céu azul-claro, garças brancas, enormes como flamingos, tuiuiús fabulosos, extensas praias de areia alva e fina. Um pedaço do Éden, Ziza. E a sinfonia dos pássaros, numa manhã luminosa…
– Éden, que palavra antiga, Maria Rita! Éden, edênico, vão dizer que nós somos do século XIX. Mas sei que você é feliz nesses sonhos, e isso é que importa.
– É verdade, é um outro mundo. Andei estudando a geografia da região, para reforçar os conhecimentos do nosso tempo do…
– … do Grupo Escolar Dom Benevides, lá na nossa terra. Ainda me lembro das aulas de Dona Didina, que copiávamos naqueles cadernos fininhos, que a gente comprava no armazém de Sô Miro. Ah, manhã de reminiscências! Ideal, com essa chuva. Ouvir Mozart e Vivaldi, lembrar amores antigos, de banco de jardim, coreto na praça e missa das dez.
– Que melancolia, Ziza. Estou falando de trópicos, de primavera. Você se lembra daquela coisa das nascentes e limites?
– Coisa chatíssima, nunca consegui decorar Geografia.
– Pois aí vai, pra te refrescar a memória. O Rio Guaporé nasce no Estado de Mato Grosso, na Chapada dos Parecis e, em grande parte, serve de limite entre o Território de Guaporé e a Bolívia.
– Território de Guaporé! Francamente, Maria Rita! Emende-se!
– Não me emendo! Já te disse, cabeça-dura, é Guaporé no meu imaginário sentimental, na minha geografia afetiva. Que coisa, mulher, deixe de ser cartesiana, oficial, burocrática, cartorial. Afinal, você é uma pintora, uma desenhista, uma criadora. Aguente aí: depois de um percurso de cerca de mil e oitocentos quilômetros, na maior parte navegável, o Rio Guaporé deságua no Rio Madeira, que é um dos formadores do Amazonas. O Madeira passa na capital, Porto Velho.
– Que memória, mulher!
– Dei de estudar o assunto.
– O que deveria ter feito décadas atrás.
– Vá pentear macacos, vá amolar o boi ! Não me interrompa, quero chegar ao sonho, que diacho! Entre os principais afluentes do Rio Guaporé…
– Isso está parecendo prova semestral, com Dona Eutorgina na sala de aula, inspecionando, ar feroz, que horror, Maria Rita!
– … em território brasileiro, estão o Alegre e o Verde, o Paráguas, o Itoriamas ou São Miguel, isso pela margem esquerda e, pela margem direita, o Cautário…
– Desse nome me lembro, parece que foi há cem anos, credo, mas me lembro, Cautário.
– …o Corumbiara ou Caxibi ou Branco, o Guaritire, o Sararé, o Balizada. E outro, de um lado e de outro, aquilo parece uma teia de aranha, Ziza.
– Você só pode estar lendo.
– Por enquanto, sim, naquele velho livro de Mário da Veiga Cabral, caindo aos pedaços, mais velho que a Sé de Braga, que comprei no sebo-bistrô da Cida Caldas, o famoso Sebinho, na Asa Norte, mas já vou chegar ao sonho, estou te situando.
– O que mais, catedrática? , hoje é sábado, mas tenho o que fazer.
– Na nascente, o Guaporé tem uma água mineral ferruginosa.
– Ah, é? Como as “Águas Férreas”, entre Ouro Preto e Mariana. Isso é bom.
– Você se lembra de que, na Bolívia, o Guaporé tem o nome de Iteñez?
– Claro que não! Só me faltava essa, Doutora “Honoris Causa” em Guaporé! Você quer também que eu me lembre onde fica o vulcão Aconcágua ou coisa assim? Você, com suas maluquices! Mas me conte logo o sonho, ainda nem arrumei a casa e minha sobrinha…
– Glorinha espera. Dona Didina nos dava aula de português, matemática, História e Geografia do Brasil, na nossa antiga sala, aquela da ponta, com janela para o Chafariz do Seminário Maior, obra do Aleijadinho.Tínhamos o quê, oito, nove anos? Um dia, ela falava sobre o Território Federal de Guaporé, criado pouco antes, em mil, novecentos e quarenta e três, com outros, Acre, Amapá, Nova Iguassu, com dois esses, e Fernando de Noronha, a ilha do Oceano Atlântico .
– Que é ilha eu sei, professora, não sou tão..…
– Não estou te chamando de ignorante. Preste atenção, nessa aula você estava cochilando ao meu lado, nós naquele uniforme de blusa branca e saia azul, plissada, com alças e tudo, sapato preto e meia soquete, branca, e aquela fome de antes do recreio, quando Seu Gabriel batia a sineta das nove horas. Dona Didina dizendo mais ou menos assim…
– Dona Didina tinha uma voz calma, de veludo, uma bondade de pessoa.
-Ela dizia assim: “Houve muitos conflitos antigamente, entre portugueses, espanhóis e índios, muitas lutas pela posse da terra e das riquezas naturais” , e de repente, no torpor daquela aula de mil, novecentos e quarenta e nove, Ziza, tantos anos depois, num sonho, me vi mulher feita, jovem, seios túrgidos…
-Túrgidos, Maria Rita, logo túrgidos?
-Não me atrapalhe …os cabelos negros, escorridos, tez morena como Iracema, conterrânea de Rachel de Queiroz e de Ana Miranda, ouvindo o canto das aves amazônicas em Guaporé, muitos pássaros, bandos, aves lindas de plumagens exuberantes, Ziza, mutuns, jacus, jaós, pombas, papagaios e periquitos, tucanos, araras vermelhas e azuis, garças, patos e gansos selvagens, codornas, perdizes, colhereiros, uiratatás, carupirás, guarás, maguaris, tucanuçus…
– Estou entrando no seu sonho, ainda bem que trouxe a cadeira.
– …e eu era uma índia tomando banho no Rio Guaporé, cercada por aquele esplendor de natureza, flores e árvores e lianas, aquela fartura de cores, aquela encantação de sons, integrada à alma verde da floresta do nosso Brasil, dos povos e dos bichos da floresta, e então apareceu um guerreiro branco bonito, um misto de descobridor e sertanista, como um Martim Afonso, um Ponce de León, um João Ramalho, um Raposo Tavares, um Balboa, podia ser até o Borba Gato, e no rio nos encontramos e nos amamos, e no céu azul voavam ( e alguns cantavam) canários, arapongas, corocas, correirões, fri-friós, japus, guaracavas, sabiás-barranco, até o pássaro mágico, meio mitológico, quase arturiano, que é o uirapuru; o canto do uirapuru é semelhante ao som da flauta doce…
– Vocês se amaram no rio? Fico imaginando, Maria Rita. Você é uma lúbrica de seios túrgidos e lábios de mel, uma devoradora de homens, uma perdida. Meu Deus, uma avó de três netos, metida no rio com um estranho !
– Vá lamber sabão, menina! Não havia lascívia, não havia lubricidade, era um amor de criaturas inocentes no coração verde da mata, na aurora do mundo, no paraíso de Guaporé, era primavera, entre vitórias-régias e cambarás, mil pássaros canoros, Ziza, o curiango, o sabiá-laranjeira, o bacurau, o galo-de-campina, o juruviara-de-coroa-castanha, o arapaçu-turdina, a maitaca, a juriti, o bem-te-vi, a jandaia, o inhambu-guaçu, o iuru-tutu, o papagaio-moleiro…
– Estou tonta, Maria Rita, que festival de…
-Feche os olhos, não me interrompa, Madre Superiora, tem mais, ouça comigo as vozes da floresta brasileira: o aracuã, o surucuá, o crochó, o tinguçu, todos cantavam, em torno de nós, nas águas limpas do Guaporé, e mais o trinca-ferro, o corruíra-do-brejo, o pica-pau-de-topete-vermelho, o japiim, o cardeal …
– Você virou uma enciclopédia ornitológica ambulante!
– Acabei aprendendo esses nomes, que trago por escrito num caderno, mas no sonho havia tudo isso, pássaros incríveis, uma sonoridade mágica na mata, uma explosão de vida tropical, estou falando sério, Ziza, foi um sonho longo, mas parecia real, uma coisa onírica, quase uma epifania, misturada a uma realidade que se podia tanger com as mãos…Cenários paradisíacos com belezas da fauna e da flora do Brasil.
– Continue sua catarse, amiga.
– Surgiram pássaros que não estão nos livros, espécimes ornitológicos raríssimos, que só os poetas conhecem, o jobim-açu, o vinicius-açu, o caymi-açu, o manoel-de-barros-açu, a cora-coralina-açu, o guimarães-rosa-açu, o villa-lobos-açu, o quintana-açu, a yara-tupynambá-açu, nenhum mirim, você não pode imaginar o que é um sonho em Guaporé, é uma sinfonia de melodias silvestres, uma orquestração infindável de sons encantados, uma paleta de cores maravilhosas para Portinari, Pancetti, Bracher, Sylvio Pinto, Sérgio Telles, e uma paz meio zen, eu era uma índia na pureza do Jardim Inicial, uma pagã, mas filha do Criador…
– Maria Rita, você delira!
– Me deixe com meu Guaporé primevo e primordial.
– Que misturada de pássaros! É a sua mitologia poética tropical.
– Mas é real, amazônica. Na floresta lírica cabem pássaros também da Mata Atlântica que migraram para meu sonho. E assim, amiga, lá estavam o sanhaço-de-fogo ou tiê, o periquito-rei, o biguatinga, o sanhaço-rei, o quiriquiri, o irerê, o sabiá, a araquã, o tangará, o anambé-azul, até a garça real eu vi. E ainda o surucuá—açu.
– Um dia você ainda sonhará com o Pantanal de Almir Sater, Manoel de Barros, Raquel Naveira e Nicolas Behr.
– É o que mais quero: voltar lá, no sonho. Entrando por Poconé ou Miranda. Quem sabe até por Diamantino.
– No sonho, isto é, na sua cosmogonia das matas e das águas.
– Nosso país, com todos os problemas desde o contrabando do pau-brasil ou pau- de- tinta pelos corsários franceses, a partir do ano de mil e quinhentos, é uma terra de encantamentos. E problemas. Todos nós sabemos que são problemas da Amazônia a exploração descontrolada dos recursos naturais, o criminoso desmatamento de áreas imensas, os madeireiros e garimpeiros clandestinos, os incêndios provocados, a desertificação, o desequilíbrio ecológico-ambiental e muito mais que isso.
– Sim, concordo, mas por que essa fixação por Guaporé? Deve ser a nostalgia da nossa infância, a saudade do nosso tempo de criança, em geral feliz, uma transferência, você precisa procurar uma psicanalista, com certa urgência.
– Para quê, Madame Descartes? Está bom assim, sem traumas, sem angústias, com prazer, são apenas sonhos, evasões noturnas. Guaporé é minha Pasárgada, minha Tule, minha Finisterra, o que há de mal nisso? Me deixe sonhar, mulher! E ainda nem falei dos impressionantes peixes-boi e das fascinantes legiões de borboletas ! Ah, não te contei outro sonho.
– Outro? Já estou descadeirada de tanto ouvir, nesta falsa cadeira austríaca. Eu não aguento outro sonho delirante desses. Glorinha está para chegar, vamos fazer compras na venda, no armazém, na mercearia, digo, na linguagem de hoje, no supermercado.
– Troque de cadeira, aguente a mão e os ouvidos, para isso servem os verdadeiros amigos. Num desses sonhos vi, com grande clareza, o igarapé Curiã, as nascentes do Rio Cabixi, o Planalto de Vilhena, as margens do Rio Ituxi ou Iquiri, a foz do Rio Mucuim, como se estivesse num avião, vendo tudo lá de cima, um velho avião do Correio Aéreo Nacional, o heróico CAN, e depois desci, encontrei a índia kalapalo Diacuí.
– Diacuí? Desça mesmo desse avião, ponha os pés no chão, Maria Rita. Se não me falha a memória, Diacuí vivia no Xingu, me lembro das reportagens na revista “O Cruzeiro”, o casamento dela no Rio, na Igreja da Candelária, com aquele sertanista gaúcho. Até o Presidente Getúlio Vargas, astuto e carismático como era, compareceu à cerimônia.
– Eu sei, mas ela estava no sonho, sonho é sonho, tenha paciência! Diacuí é outra lembrança da nossa mocidade, é quase um mito amazônico, como uma iara. Na verdade, como uma deusa da floresta brasileira, e eu a vi nesse sonho, com aquele sorriso inocente, ingênuo, floral. Como você sabe, ela morreu pouco depois do casamento, não me lembro se chegou a ter filho. Na nossa idade, vamos vivendo de mitos, fantasmas, fugitivas imagens do passado, lembranças.
– Tudo bem, Maria Rita, tudo bem, eu também gosto de Guaporé, estou aprendendo com você, é como, mais ou menos, nossa meninice lá em Santoral, é o Grupo Escolar, é a praça com coreto e jardim, o primeiro namorico na sala de aula e no recreio, eu compreendo, você sabe que não sou insensível. Na verdade, queríamos voltar àquele tempo.
– Com sinos tocando. Com as procissões, as festas de São João, as quermesses ou barraquinhas. O velho órgão alemão Arp Schnitger da Sé Catedral, o coral “Schola Cantorum” do Padre Maia, nossas casas, o Cine Theatro Central ( que era o nosso Cinema Paradiso ), as igrejas do século XVIII, o Rancho dos Tropeiros de Sô Catinho Camêllo, a cidade que parecia eterna e a infância que não ia acabar nunca, ninguém ia morrer.
– Santoral. Guaporé. Por isso você sonha. Eram os nossos paraísos, o que ia durar para sempre, como o pai, a mãe, os irmãos, a família, os amigos, a casa, o mapa do Brasil na parede da sala de aula, o retrato de Getúlio Vargas com a faixa presidencial. Tudo seria para sempre, nada acabaria.
– Não quero deixar de sonhar com Guaporé. Como sonho com a nossa Santoral. Até com a Cidade das Portas de Ouro, você não acredita. É tudo território da infância e da magia. Do lúdico e da aventura na criatividade dos escritores. O Eldorado e Shangri-lá. Marco Polo na China do Imperador Kublai Khan. As viagens de Gulliver, Tarzan na Cidade Perdida de Edgard Rice Burroughs, a Serra dos Martírios de Francisco Marins, os livros de Júlio Verne e Emílio Salgari, o Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato, a Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson, as Minas do Rei Salomão de Ridder Haggard, o Mundo Perdido de Conan Doyle, as Mil e Uma Noites com Haarum-al-Raschid, mais o palácio tumular do Taj Mahal, o palácio mourisco da Alhambra em Granada , descrito por Washington Irving, e até a cidade do sino de ouro no interior de Goiás que Rubem Braga imortalizou na crônica “O sino de ouro”. Guaporé pode ser uma metáfora, talvez uma hipérbole, da minha infância, da nossa meninice inocente. Como um mês de maio, com a coroação de Nossa Senhora e, depois, cartuchos de amêndoas glaçadas, que nunca mais vi.
– Nossa terra vai ficando tão longe, tantos mortos. Olho para trás e vejo um cemitério, com o sino da capela de Santana tocando a finados.
– Nossa terra, tão antiga e sossegada, mas alegre, só dois carros-de-praça, festas de Santo Antônio, São João e São Pedro, Natal e Consoadas ( que hoje virou Réveillon) , Carnaval com Zé Pereira antes, agitadas eleições até com mortes, namoro no Jardim de Cima.
– E no Jardim de Baixo, na Praça da Estação Ferroviária.
– Tudo ia durar para sempre, como o café com pão e manteiga e às vezes salame, queijo de meia-cura , broas de milho e biscoitos de polvilho. O pão-de-ló, em forma de bolo, de Dona Tancinha Mol, mãe de Jerônimo e mais uns sete filhos.
– E as deliciosas quecas de Dona Dorita Motta, precursoras do panettone com frutas cristalizadas. Queca, cake, bolo. Os ingleses da Mina de Ouro da Passagem levaram a queca para Santoral e arredores.
– E galinha ao molho pardo, com angu. Polenta. E macarronada de domingo, com frango assado. Guaraná só em festas.
– Frio danado. E, no verão, chuvas intermináveis, torós medonhos, a energia elétrica pifava, as estradas viravam lamaçal, os poucos telefones silenciavam. Não havia geladeira nem televisão. Só rádio e eletrola para discos. Meu pai comprou um grande rádio marca Telefunken, foi nele que ouvimos as festas da inauguração de Brasília, em 1960. Santoral é a nossa Macondo de Gabriel García Marquez, é a nossa Comala de Juan Rulfo.
-Amiga, estamos ficando piegas. Eita! A conversa chegou ao fim.
– Vamos cuidar da vida. Me ligue, sempre que sonhar com Guaporé. Não tenha receio de parecer piegas, me conte o que sonhou. Guaporé. Mas, afinal, sua doutora em Amazônia misteriosa, o que significa Guaporé, palavra indígena ?
– Uns autores dizem que é “rio campestre”. Outros afirmam que significa “produto do vale”, “o que se colhe na várzea”, “raízes doces”, “cipós saborosos”. Está tudo aqui nas anotações do meu caderno. Não importa tanto a etimologia dos linguistas, dos sábios. É uma parte boa da nossa infância escolar, a segurança do mapa do Brasil pregado na parede ao lado da Bandeira Nacional, eterno como os sinos de bronze ecoando pela cidade.
– Até outra hora, Maria Rita, ciao, um beijo.
– Outro pra você. Desculpe o mau jeito, Ziza, essa coisa de sonho só conto pra você. Até outra hora. Você viu como chove?
-Estou vendo, pela janela. É outubro, ainda bem que chove, Deus louvado! Águas de Guaporé, Maria Rita.
– Águas de Santoral, águas do nosso tempo, Ziza. Até breve!
Brasília, primavera / outubro de 2019.
Por Danilo Gomes, acadêmico ocupante da cadeira n° 1.