Entardece na Praia do Francês. Estou diante do mar, bebendo cerveja, de bermuda, camisa velha e chapéu panamá ( legítimo, hecho en Ecuador) que a poeta Kori Bolivia me deu de presente. Sou um idoso aposentado, bestando na praia. Esta hora – escreveu Gilberto Amado, nas suas memórias – é “a hora música da tarde”. É a hora em que as musas “baixam”. A música, aqui, é a canção das ondas batendo nos arrecifes e nas areias adornadas de pequenas conchas, que meus netos procuram. A música aqui é o marulhar contínuo que vem de Portugal, do Tejo, da Torre de Belém, há séculos. E da Praia do Restelo, aquela do camoniano Velho do Restelo.
Que francês era esse, que deu nome a esta bela e panorâmica paisagem no município de Marechal Deodoro? Maceió não fica muito longe ; coisa de cinco léguas. Dizia o saudoso poeta e prosador Lêdo Ivo que o francês naufragou por estas bandas, ali pelo século XVI, e passou a namorar as bonitas índias de Alagoas. Gostou e ficou, o felizardo. Certamente deixou filharada.
Eu, que não sei nadar nem uso “um velho calção de banho” dos que Vinicius de Moraes usava em Itapuã, só fico olhando o mar-oceano e imaginando cenas talássicas. Dou asas à imaginação, sou meio imaginoso.
Estou longe das montanhas, das serras, do mundo rural, do cerrado, das écoglas, pastorais e madrigais. O verde-azul do mar me domina nesta hora quase crepuscular.
Não estou diante de um cemitério marinho, que inspirou “O cemitério marinho”, famoso poema de Paul Valéry, que o poeta José Jeronymo Rivera traduziu com tanto esmero ( “Os mortos estão bem sob essa terra/ Que os reaquece e seca o seu mistério.”).
O mar que tenho diante de mim – um homem de 77 anos – é uma cornucópia de vida- pulsante, fremente, fantástica. Uma embarcação cheia de gente passa apitando, com suas bandeirolas.
Lição de coisas: Ivo viu a uva ; vovô bebe cerveja; os netos catam conchas; gaivotas pairam sobre as águas, em direção ao horizonte.
E lá embaixo seres marinhos, alguns mitológicos, proclamam as maravilhas da Criação e a diversidade encantatória das criaturas. Não me restrinjo ao Oceano Atlântico que banha as costas brasileiras. Fecho os olhos e mergulho também no Oceano Pacífico, no Oceano Índico, no Oceano Antártico. Planeta azul de muita água. Tenho este resto de tarde para vadiar e a cerveja –eu lhes prometo – não me levará a imaginar belas sereias, como as que tentaram Ulisses voltando para os braços de Penélope, em Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Sereias são atraentes, mas perigosas. Até a sedutora Iara amazônica, metade peixe, metade mulher, “envolta na cabeleira verde”, como escreveu a esquecida Yara do Rio, no seu já raro pequeno livro “O maravilhoso na Amazônia”, que a Editora Alba, do Rio, publicou em 1940.
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O que imagino ver, nesse mundão de abissais águas oceânicas? Vejo logo a morsa, que nada bem e pode pesar até uma tonelada. É chamada vaca marinha e pode ter sete metros de comprimento. A natureza a dotou de presas enormes, que a ajudam no deslocamento no gelo, na defesa e na caça. O macho tem grandes e longos caninos superiores.
O pinguim é uma graça. Os machos é que chocam os ovos. Parece que usam smocking. São bichos elegantes, de ar aristocrático.
Já as baleias amamentam as crias. Criaturas gigantescas, elas nos remetem à Moby Dick, a grande baleia branca, imortal criação literária de Herman Melville (1819- 1891 ), um escritor que morreu esquecido e abandonado. E aqui me lembro também de Hemingway: “O velho e o mar”, outro clássico.
E os tubarões? Esses bichões dão um medo danado na gente. São, em geral, terríveis predadores. Tubarão-tigre, tubarão-branco, tubarão isso, aquilo e aquiloutro. São 380 espécies em todo o mundo; no Brasil temos 80 espécies. Melhor não chegar perto. Os tubarões de menor porte são chamados cações. Na dúvida, se o bicho é tubarão ou cação, recomenda-se atentar para o anexim da
sabedoria popular: “Se a gente come ele, é cação; se ele come a gente, é tubarão.”
Há poucos dias vi na internet que, na costa de Tauranga, na Nova Zelândia, 19 turistas estavam passeando de barco quando avistaram, bem próximo,um tubarão- baleia. Tubarão-baleia, eu nunca tinha ouvido falar desse animal ! Homessa! Atentei para a foto. Vi um belo espécime, azulado de um azul claro, com pintas brancas, bichão bonito mesmo, de cerca de 20 toneladas. Não tenham medo: apesar do nome e do tamanho, o massa-bruta oferece pouco perigo aos humanos, informa o noticiário. Não obstante, melhor passar ao largo, j’ouviram? Cá eu fico sossegado: jamais irei à Nova Zelândia ou à Austrália, à Groenlândia ou a Madagascar, não tenho mais idade para essas aventuras. Prefiro ler, pela quarta vez, “As minas do Rei Salomão”, de H. Ridder Haggard, obra-prima que até o refinado Eça de Queiroz traduziu.
Fico encantado com as grandes tartarugas marinhas e seus filhotes. Eu as acompanho com olhar amoroso e me lembro do festejado Projeto Tamar, que cuida dessas longevas criaturas. Seus líderes,militantes e voluntários merecem honras de portaló e cerimonial de gala.
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Abro os olhos, volto à tona. Os pais cuidam dos meus netos, um menino e uma menina: agora estão os quatro nadando, aproveitando o resto da tarde. Peço ao garçom mais uma garrafa de cerveja e umas agulhinhas fritas, um bom tira- gosto. Depois mergulho de novo no meu aquático mundo de realidade e imaginação. Desço aos pélagos mais profundos, como se fosse um experiente
mergulhador da Marinha do Brasil…
É a vez da medusa, também chamada urtiga-do-mar, água-viva, cansanção, até alforreca. Sua mordida dói pra caramba. Pouco adiante, a caravela, que é uma temida criatura de muitos tentáculos, peçonhenta que só, pode matar o freguês. Por sua vez, a orca é um mamífero cetáceo muito agressivo, carnívoro, cauda vigorosa e dentes fortes e agudos. Melhor contemplar a sensacional flora
marinha. Fauna e flora se interpenetram fantasticamente para formar um santuário natural, digno da imaginação de Jules Verne.
Já o hipocampo é um gênero de peixe a que pertence o cavalo marinho.Tem lá sua graça.Temos ainda a perigosa moréia, a barracuda, o peixe- espada, a arraia que parece voar. O polvo é essa criatura feia e gosmenta. Na panela, é acepipe. Na caldeirada, é peça de sustança.
Melhor ver peixes de todos os tamanhos, formas, cores, uma fartura reluzente. Cardumes e cardumes. Dos mais bonitos é o budião-azul, quase em extinção.Dá gosto ver o budião-azul, senhores. É também chamado peixe-papagaio, nome até poético. Peixes de montão. Parece que estou no Oceanário de Lisboa, onde estão perpetuados trechos de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen
e outros autores siderados pelo mar. Estive lá em 2013.
Bonito também é o cangulo-rei. A feiúra ficou para o peixe-cofre, a arraia-torpedo, a moréia verde que parece cobra, a arraia-jamanta e um tal peixe- pedra. O peixe-pedra é disforme, tão feio que dá dó. Sobrou feiúra também para um peixe de nome mangangá ( Scorpaena plumieri ). São todos de assustar menino.
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Assustado fico eu, um velho, um cabeça-branca, quando topo com o próprio Poseidon, o deus dos mares da mitologia grega, filho de Cronos e Reia. Poseidon em pessoa, vejam as senhoras e os senhores ! Portentoso, alto como o Colosso de Rodes, majestático, barba longa, cara de poucos amigos lá no alto, lá no Olimpo. Bem, acho que ando bebendo demais da conta…Exagerei um pouco hoje. Sim, é o Netuno dos romanos. Traz na mão o célebre e letal tridente. Melhor cair fora. Mas logo aparece um tal kraken. Que diabo é isso, escriba? Diz-que é também um ser mitológico de antigas e absconsas teogonias. Um misto de polvo e lula, raivoso, feio como o capeta, grandes olhos malvados. Verdadeira assombração que, fosse em terra, surgiria ao pé de três sinistras gameleiras, toda sexta-feira da quaresma, por volta da meia-noite. Coisa das trevas medievais com suas medonhas fogueiras inquisitoriais. É um monstro gigantesco, destruidor e feroz, com muitos tentáculos. Esconjuro ! Cáspite! Vade retro, kraken! Saio do pesadelo, abro os olhos, ufa!, tomo mais uns goles de cerveja, a noite está caindo.
Só me faltou ver uma daquelas tenebrosas, gigantescas serpentes marinhas imaginadas pelo medo dos navegadores dos séculos dos Descobrimentos Marítimos e que faziam naufragar os navios. O medo atiça a imaginação. A literatura é rica nesse particular: Poe, Dickens, Defoe, Maupassant, Lovecraft, Hoffmann, Conan Doyle, tantos outros, mais o autor setecentista inglês Horace Walpole,
autor do romance “O Castelo de Otranto”.
Ah, o pequeno cavalo marinho voltou, vejam só! Está perto dos arrecifes, fazendo gracinhas, dando até cambalhotas. Metade peixe, metade cavalo. Diz-que a graciosa e exótica criatura não faz mal a ninguém, até brinca com a criançada. Parece um mimoso camafeu para uso de moça donzela.
Hora de picar a mula, como dizemos lá em Minas. Isto é, ir embora, pegar estrada. Picar é dar uma esporeada na mula. Sem machucar a pobre montaria, criatura de Deus. Fim da navegação por fabulosos mares. As primeiras estrelas vão surgir nesse céu de Alagoas. Veremos Aldebarã, poeta Eugenio Giovenardi? Bora, meninada!
Vou tomar a saideira e dar esta prosa por encerrada. E nem falei de caravelas, ouro, prata, pedras preciosas, pérolas de Ofir , sedas e porcelanas da China e especiarias a bordo, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães e Pedro Álvares Cabral,a ilha do tesouro de Robert Louis Stevenson e suas viagens pelos Mares do Sul, o Capitão Cook rumando para a Austrália, o navegador Sir Walter
Raleigh cortejando Elizabeth I, aventuras de piratas, corsários, bucaneiros e flibusteiros. É um nunca acabar. E a vida, posto que bela, é curta.
O mar – como diriam Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai- é um mar de histórias…