É uma certa intuição que lhe avisa para agir rápido: ele jamais passaria a quarentena longe dela. Bobo nunca foi, pelo contrário. Quem dispensaria a comida fresca e o cobertor quente? O fato é que ela não tem mais saúde para aguentar. É só olhar no espelho para ter certeza. Por isso, num segundo, executa o plano, rezando para que funcione. Mentalmente, repete as orações aprendidas na infância. Durante um ‘pai nosso’, ouve os primeiros ruídos da aproximação dele. Os mesmos passos largos, a tão conhecida intimidade com os movimentos toscos, o assobio boçal. Paralisados, o filho maior e o filho menor medem até a própria respiração para não fazer barulho.
A maçaneta gira uma, duas, três vezes. A campainha soa. Uma, duas, três, infinitas vezes. A sequência previsível se realiza: os gritos, os socos. Ela treme, mas continua firme. Ele é bruto. Mesmo sem a chave, força a entrada, truculento. Contrariada, a porta range, mas cede, sem ter mais como resistir. Se pudesse, se manteria trancada, insensível à abordagem daquele corpo estranho. Agora, as paredes da sala o encaram, intrigadas pela sua presença, depois de tanto tempo. E empalidecem. Em voz baixa, comentam entre si a surpresa de seu regresso, considerado improvável, quase impossível, sobretudo por causa das vacinas que a mulher aceitou, finalmente, tomar. O teto se surpreende com a aparição. De cima, habituou-se a contemplar apenas os três: a mulher, o filho maior e o filho menor. Por semanas, por meses. O lustre que oscila sobre os móveis e o sofá se pergunta se o corpo estranho conseguirá instalar-se novamente, como logrou fazer outras vezes, oportunista, ou se será expulso na velocidade necessária, como nunca se viu. Assim como a luminária, a mulher oscilou várias vezes, insegura, sem força suficiente para repelir a invasão. E se deu mal. Cenas desagradáveis permanecem acesas na memória das paredes, do teto, do lustre. Testemunhas silenciosas da história, eles não disfarçam a inquietude que os assalta, sobretudo por não poderem fazer praticamente nada.
Como quem veio para ficar, ele larga a bagagem no chão e, à vontade, olha em torno, procurando reconhecer o espaço antes tão familiar. Chama por ela e pelos filhos, a voz animada, bem disposta, como se nada. A resposta é um silêncio espesso, difícil de atravessar. Por onde andarão, se a ordem é para que todo mundo fique em casa? Desconfiado, vai à cozinha e confirma: não há ninguém. Passa um olho pelos quartos, já se conformando. Por um segundo, o sangue lhe sobe à cabeça, como é comum. Grita mais alto. Dessa vez com raiva. Uma raiva que não tem para onde ir. A cidade está vazia. Seus lugares prediletos estão fechados, sem data para reabrir. Os companheiros se isolaram. As amigas sumiram. O mundo que conhece, desfeito, não tem mais como abrigá-lo.
Decidido a refrescar as ideias, atira a roupa longe e se mete debaixo do chuveiro, como se a ducha forte pudesse purificá-lo. Quer a água na temperatura máxima, na esperança de eliminar de suas carnes todo e qualquer vestígio de sujeira, de doença, de álcool, de jogo, de batom, de maquiagem. Não sabe quantos dias terá que passar recolhido, escondendo-se do ser maligno que resolveu incomodar o planeta.
A mulher sabe que tem trinta minutos pela frente. Assim, aproveita o momento do banho para deixar o esconderijo, erguido ardilosamente durante a ausência dele. Acompanhada dos filhos, sai de casa para longe, para bem longe. Vão sem máscara, sem qualquer equipamento de proteção. Mas vão aliviados, com esperança de sobreviver. O que mais querem é desaparecer nesse mundo sem deus. Um metro de distância dele é pouco, muito pouco.