“BREVIÁRIO DOS POLÍTICOS”
Danilo Gomes
“Nessa atitude havia, de resto, uma parte de
suspeita: fui durante alguns dias dominado pelo medo do veneno,
medo atroz que observara outrora no olhar de Trajano enfermo,
e que um príncipe não ousa confessar porque parece grotesco en-
quanto o desfecho ainda não o justifica.” (“Memórias de
Adriano”, de Marguerite Yourcenar –Rio, Nova Fronteira, 2019, 24ª
ed., p.203.)
Há 336 anos foi publicado o “Breviário dos Políticos”, o livro do cardeal Jules Mazarin (1602-1661), o amigo e sucessor do cardeal Richelieu no governo da França, como primeiro-ministro. Essa pequena e curiosa obra foi publicada em latim, em 1684, e amplamente traduzida em diversas línguas.
Uma nova edição brasileira – um livro de bolso de 206 páginas – veio a lume em 2004, pela Editora 34, de São Paulo, com tradução de Paulo Neves, apresentação de Bolívar Lamounier e prefácio de Umberto Eco. As notas de rodapé são de François Rosso.
Político astuto, italiano nascido em Pescina, nos Abruzzos, e naturalizado francês, Mazarin escreveu essa série de máximas que constituem “um verdadeiro guia, em tom coloquial e direto, para aqueles que sonham conquistar o poder” – escreve, nas orelhas do volume, a repórter política Cristiana Lobo, que mora aqui em Brasília.
De fato, o refinado premier , reunindo franqueza, experiência e boa dose de astúcia, ensina o que pretende ser eficácia em política, ou seja, a busca e o exercício do poder. Ele não se dirige a nenhum príncipe, mas a todos, democraticamente, coletivamente.
Livro sempre atual, esse “Breviário dos Políticos”, considerando o hobbesiano “estado de natureza” em que todos lutam contra todos, buscando espaços e apoios, para conquistar e manter posições hierárquicas, ensina, afinal, a labiríntica arte da sobrevivência.
Dissimulação, astúcia e prudência são alguns dos ingredientes da receita do célebre purpurado franco-italiano ou ítalo-francês ( como Napoleão Bonaparte ) e que de batismo tinha o nome de Giulio Raimondo Mazarino.
Um dos principais conselhos de Mazarin: “Não confies em ninguém.” Outro: “ Fala bem de todo mundo.” E mais: “Deves aprender a vigiar tuas ações e a jamais relaxar essa vigilância.” E ainda: “Reflete antes de agir.”
Na pág. 41 outra regra: “ Deves ter informações sobre todo o mundo, não confiar teus próprios segredos a ninguém, mas colocar toda a tua perseverança em descobrir os dos outros. Para tanto, espiona todo o mundo, e de todas as maneiras possíveis.”
Outras “pérolas” de Sua Eminência Reverendíssima, catadas ao longo desse vade-mécum:
– “Jamais confies a ninguém tuas inclinações íntimas, nem tuas repugnâncias, nem tuas timidezes.”
– “Que ninguém presencie teu levantar, teu deitar, nem tuas refeições.”
– “Adota como regra absoluta jamais confiar segredos de importância, mesmo a um íntimo; pois não há ninguém que, com o tempo, não possa se revelar teu inimigo. Guarda-te de agir e de decidir sob o efeito da euforia ou da exultação, pois cometerias asneiras que te fariam cair em armadilhas.”
O “Breviário” do precavido prelado e estadista consta também do grosso volume “Conselhos aos Governantes”, publicado em 2000 pelo Senado Federal na Coleção Clássicos da Política, reunindo, em 831 páginas, antológicas lições de Sócrates, Platão, Kautilya, Maquiavel, Erasmo de Roterdam, Miguel de Cervantes, o dito Mazarino, Maurício de Nassau, Sebastião César de Meneses, D. Luís da Cunha, Marquês de Pombal, Frederico da Prússia e o nosso imperador D. Pedro II. O ”Breviário dos Políticos” foi, nesse caso, traduzido do francês por Roberto Aurélio Lustosa da Costa. Já está em segunda edição, com apresentação de Walter Costa Porto.
Mas voltemos ao desconfiado conselheiro, homem de confiança da regente Ana d’ Áustria ( que era espanhola e mãe de Luís XIV, ainda menino). O cardeal alerta:
– “Se és dominado por uma paixão – o jogo, a caça, os prazeres carnais -, abandona-a o mais depressa possível e definitivamente, pois essas paixões te arrastariam a grandes imprudências.”
– “Em toda circunstância em que podes ser vigiado, fala o mínimo possível . Arriscarás menos cometer um erro do que se falares a torto e a direito.”
– “Evita as rupturas violentas.”
– “Cuida de não te lançares muito prontamente contra alguém: com muita frequência, descobrirás que informações malévolas te induziram em erro a respeito dele. Ora, se antes dessa descoberta te deixaste arrastar pela cólera, é sobre ti que o mal recairá.”
– “Aconteça o que acontecer, oculta tua cólera: um único acesso de violência prejudica mais tua reputação do que todas as tuas virtudes são capazes de elevá-la.”
E a “velha raposa”, que conseguiu, mediante vitórias e tratados, restabelecer a paz na cristandade, seu grande sonho geopolítico, encerra o seu testamento político com estas palavras de desconfiança e sagacidade:
– “Atenção, neste momento alguém – que não vês – talvez esteja te observando, ou te escutando.”
Mazarino foi oficial do exército papal. Depois ingressou na diplomacia, de que se tornou um corifeu, pelas suas habilidades. Não chegou a se ordenar padre. Mas se tornou núncio apostólico em Paris e em breve alcançou o cardinalato. Dando apoio à sua ascensão, lá estava o poderoso Armand Jean du Plessis, o cardeal Richelieu, primeiro-ministro do fraco e indolente Luís XIII. Richelieu é o personagem malvado do romance “Os três mosqueteiros”, de Alexandre Dumas. Em 1639, Mazarino naturalizou-se francês. Como primeiro-ministro, na regência de Ana d’ Áustria, pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, com os tratados de Vestfália.
Com o correr dos anos, Mazarino fez-se senhor de uma colossal fortuna. Esteta refinado, tornou-se dono de ricas coleções de arte no seu Palácio Mazarin e no castelo de Vincennes, onde faleceu. Deixou uma opulenta biblioteca, a chamada Biblioteca Mazarina, instituição pública criada por sua ordem, em Paris. Essa Biblioteca Mazarina foi mais tarde incorporada à Biblioteca Nacional da França.
Resumindo, o purpurado parece nos dizer, numa lição final: “Sê discreto, prudente, reservado e desconfiado de tudo e de todos.” Ele baseou seu livro na sua vivência diplomática e também em fatos da vida política do cardeal Richelieu, vítima de muitas conspirações de uma corte invejosa e ávida de fortuna e poder. Mazarin: uma raposa realmente muito felpuda. Até o fim da vida ainda lhe restou algum poder, seu prestígio junto ao trono não se extinguiu de todo. Mas começava um novo período, um novo astro começava a brilhar no céu da França. Um sol se punha, outro se levantava. Iniciava-se o longo reinado de Luís XIV, o chamado “Rei-Sol”, aquele que declarou com imperial arrogância: “O Estado sou eu.” ( “L’ État c’est moi.”) Depois dele, o dilúvio da sangrenta Revolução Francesa, em 1789, que fez desaparecer, por algum tempo, a aristocracia e, com ela, a legenda dos dois célebres cardeais: Richelieu e Mazarino.
Brasília, nov. 2020.