AS  OITO  RENAS 

                                                                                                                                                                               Danilo  Gomes

 

           Era uma vez, oito renas. Era uma vez, na Lapônia. Alberto Manguel  é quem saberia contar esta história. Mas  a este pobre escriba coube contá-la. Paciência! 

            Naquela noite de sábado, no silêncio da varanda atrás da casa, a TV desligada, Carminiano Sampaio  tomava sua cerveja, com roupas velhas e largas e de chinelos.  Comeu  um pedaço de queijo canastra de meia cura; tomou outro gole de cerveja. Sua mulher dormia, no andar de cima. Os filhos se casaram e mudaram de pouso. Quatro netos.

            A noite avançava e o frio de julho aumentava. Continuou bebericando e lendo um  livro que o fascinava, sobre a Revolução Francesa, Luís  XVI, Maria Antonieta, a queda da monarquia, o banho de sangue em que se transformou aquele  radicalismo insano, o Terror. 

             Quis pensar em tempos mais amenos, mais idílicos, longe da guilhotina e dos discursos sanguinários de Danton, Robespierre, Saint-Just, Marat, Desmoulins, Hébert. 

              Parou de ler.

             Colocou no aparelho de som “As Quatro  Estações”, de Vivaldi. Acendeu um charuto Suerdieck, da Bahia. Quis pensar coisas boas, situações de relaxamento, como o som da água descendo de uma pequena cascata. 

             Seu pensamento recuou no tempo. Como se sentisse o cheiro da  goiaba no tacho ou do bolo chamado queca ( de “cake”), que sua mãe fazia com insuperável perícia, lembrou-se, de repente, do Natal na sua terra, a pequena Santoral. 

             Via-se menino, esperando a passagem de Papai Noel pelas casas de Santoral, na década de 1940. Acreditava nele, piamente, e no presente que deixaria naquela noite  encantada: um pequeno caminhão de madeira ou uma piorra ou uma pequena sanfona de papelão, um brinquedo qualquer colocado no sapato pelo pai ou pela mãe ( o que ele só saberia muitos anos mais tarde).  Papai Noel era, então, um personagem real, que morava num país  frio e distante –talvez Lapônia- , que na noite de 24 de dezembro percorria o mundo  distribuindo presentes para as crianças. Vinha o velho gorducho e sorridente sentado num estranho veículo chamado trenó, arrastando atrás de si aquela montanha de brinquedos e guloseimas.

                    Carminiano Sampaio tomou mais um gole de cerveja, estava ouvindo a estação vivaldiana do inverno e pitando seu charuto, quando tentou se lembrar  dos nomes das oito renas que puxavam o trenó. Não se lembrava de nenhum. Jamais se lembraria daqueles nomes lidos em livros tão antigos. Desistiu, pensou em outras coisas. Releu algumas páginas do “Livro Tibetano dos Mortos”. 

                    Naquele começo de madrugada de frio Carminiano Sampaio  mergulhou no sono, depois da cerveja, do charuto, da leitura. 

                    Lá pelas tantas, quando solitários  galos cantavam  saudando a manhã que iria raiar, o arrebol, o dealbar, o crepúsculo matutino, a aurora prestes a se abrir em rosicler e púrpura, Carminiano  Sampaio ouviu vozes. E um galopar de renas sobre o gelo, e o tilintar de pequenos sinos muito antigos. E uma voz rouca mas alegre, de um avô meio cansado de viagem, declarou que aquelas renas, suas velhas companheiras, tinham nomes. 

                    E enquanto os  galos saudavam o novo dia, o bom velhinho nomeou as renas uma a uma: Dasher, Dancer, Prancer, Vixen,  Comet,  Cupid, Donder e Blitzen.  Eram as renas voadoras. A voz era  a de quem criara essas  míticas personagens que o imaginário popular  consagrou numa história chamada  “Uma visita de Saint Nicholas”. A voz de Papai Noel era a voz  de C. Clement  Moore e o ano era 1823, o ano daquela história. 

                  O canto dos galos, o galope das renas, o encantamento  de Vivaldi, a fantasia do bom velhinho presenteador, tudo isso fazia de Carminiano Sampaio um homem feliz mergulhado  nas sombras de um sonho. Ele sentia no ar, ainda ao longe, o sonoro  galope das renas. Era bom ouvir esse som, acompanhado de  sinetas  muito leves, como címbalos.

                 Era o último sonho, o derradeiro sono de Carminiano Sampaio. O tempo corria sem piedade, sem misericórdia. Aos 78  anos, a hora de sua morte se aproximava, longe de Santoral. A hora do réquiem. Ao longe, os derradeiros   sons   da cavalgada etérea, quase sideral, daquelas renas da magia, as  totêmicas  renas de Santa  Klaus, Saint Nicholas…Para onde iria a alma de Carminiano Sampaio? 

                   Outra vez  menino  em Santoral, numa volta à infância, mergulhado  de novo  na luz da aurora de sua vida, e ouvindo pela última vez os sinos das velhas igrejas do século XVIII, Carminiano Sampaio entregou a alma a Deus Nosso Senhor.