Esta é uma tarde como tantas outras. A diferença reside no momento do alvoroço das folhas brancas, cobertas de palavras. Saltaram de dentro de uma gaveta que deixei aberta, assim como a janela voltada para a paisagem marinha. Pretendia descansar neste final de dia, mas o inusitado do momento fez-me alterar os planos. Sentei-me no chão, depois de recolher as folhas dispersas pelo quarto, e passei a ler aqueles traços de memória antiga. Agora, propositadamente, abri outras gavetas, longe das rajadas intrusas do vento nordeste.
Certa vez, escrevi para uma amiga, que a poesia não passava de metáforas, mesmo que pretendêssemos externar algum profundo sentimento; era tudo mentirinha o que a gente dizia em quadras, estrofes e versos. Então, “gavetas” não passa de enganação, e o que a poeta Flávia de Queiroz Lima declara em seu livro: “Arrumando as gavetas”, bem poderia servir aqui para retratar o que minha mente acabara de lembrar, ao ler seu título.
Posso encontrar a explicação no valioso livro de Flávia, quando percebo o significado daquela batalha de 1922, a qual tornou livre e solta a poesia modernista e mesmo a pós-moderna. A palavra poética viaja mundos sem freios e sem censuras, em busca do dizer soberano da inverdade, em metáforas. Às vezes, rimas espontâneas surgem com tons discretos.
Como esclarece Bartolomeu Campos de Queiroz, e lembra Aristóteles,”que é do espanto diante das possibilidades reflexivas de cada elemento do mundo, que o poeta ergue a sua poesia”. Está dita a vera palavra, e podemos ver claramente o que se estampa nos versos de Flávia. E ela tenta contestar Bartolomeu, quando o avaliador crítico aconselha a que a poeta deva guardar seus “tesouros em cofres de sete chaves”.
“Guardo sim, quinquilharias
Nos porões, nas fantasias…
Muitos papeis, fotos, cartas…
Uma passagem de volta…”
É empolgante o estudo da alma humana, gravada ou apenas refletida nos espelhos vadios, soltos nos universos poéticos da vida. Ocasionalmente, a poetisa Flávia, segura poeta de sérias memórias, impregnadas de lirismo, imagens de infância, quadros de ambiente familiar e outros veio atestar em versos certos o comprometimento pessoal com a vida, desde o começo. E saiu-se com extrema felicidade.
Desço as malas…
Volto com a poeta…
Fecho as gavetas.
Carmen Schneider Guimarães – Escritora/Presidente emérita da AFEMIL – Acadêmica da AML, ocupa a cadeira nº 5.