Hoje vou ocupar o espaço desta coluna com um texto mais longo, mas acho que é por uma boa causa: a poesia. O leitor verificará ao final se valeu a pena.

Isso vem a propósito dos 110 anos que comemora este mês a Academia Mineira de Letras. Sua fundação aconteceu numa data curiosa: o Natal de 1909, isso mesmo, exatamente no dia 25 de dezembro. Outra curiosidade é que ela não foi fundada na então novíssima capital, mas na cidade mais progressista do Estado, Juiz de Fora, que se costumava chamar de “Manchester Mineira”. A história dos primeiros anos, até a transferência para Belo Horizonte, em 1915, está contada por Leila Barbosa e Marisa Timponi, no livro “Notícias da Imprensa sobre a Academia Mineira de Letras”, escrito a partir do que coletou seu fundador e primeiro secretário, Machado Sobrinho.

Da última década do século XIX às primeiras do seguinte, a fundação de academias de letras no Brasil vinha na esteira da proclamação da república, em 1889, de tal modo que se pode dizer que elas são instituições republicanas. A primeira, ao contrário do que muita gente pensa, não foi a Brasileira, mas a Academia Cearense de Letras, instalada em 15 de agosto de 1894, em Fortaleza. Ela dava continuidade ao movimento criado em 1892, na mesma cidade, por jovens escritores decididos a protestar contra a burguesia, o clero e tudo que fosse tradicional, conforme diziam os estatutos da agremiação, a que um dos fundadores, Antonio Sales (tio de Pedro Nava), deu o nome de “Padaria Espiritual” – com até um jornal literário chamado, como seria de se esperar, “O Pão”.

Em 1897, seguiu-se a criação da Academia Brasileira de Letras, na então capital do país, o Rio de Janeiro, de que o primeiro presidente foi Machado de Assis. Até 1939, quando é fundada a instituição correlata em Goiás, todos os estados àquela época existentes criaram suas academias. A de Minas é precedida pelas do Pará (1900), Pernambuco e Rio Grande do Sul (1901), Maranhão (1908) e, por diferença de um mês, também pela de São Paulo.

Como se sabe, academias de letras são organizadas por “cadeiras” – mais simbólicas que concretas –, geralmente em número de 40. Costuma-se dizer que seus ocupantes são “imortais”, mas é coisa comprovada que morrem como qualquer pessoa, a sucessão nas cadeiras, sim, estendendo-se pelo tempo.

No caso da Academia Mineira, entre antigos e atuais, contam-se 191 pessoas, dentre poetas, romancistas, ensaístas, linguistas, críticos literários, oradores, estadistas, artistas plásticos, juristas, historiadores e jornalistas – todos homens e mulheres de letras, cada qual à sua maneira. Recordem-se alguns: Alphonsus de Guimaraens, Henriqueta Lisboa, Aires da Mata Machado, Afonso Arinos, Eduardo Frieiro, Cyro dos Anjos, Milton Campos, Tancredo Neves, Juscelino Kubistschek, Mário Casassanta, Alaíde Lisboa, Vivaldi Moreira. Este último foi presidente da casa por longos anos, tendo sido responsável pela conquista da sede, o belo palacete à rua da Bahia 1466, com o não menos belo auditório ao lado (para quem quer se informar mais: www.academiamineiradeletras.org.br).

A principal solenidade dos 110 anos aconteceu no mês de novembro, tendo como ponto alto, por iniciativa de seu atual presidente, Rogério Faria Tavares, um recital de poemas da autoria de antigos e atuais membros da entidade, dividido em três movimentos (“dos fundadores”, “dos sucessores”, “dos atuais” poetas) e apresentado pelo grupo de teatro “Palavra Viva”, sob a direção de Robson Vieira.

É do recital que apresento o apanhado a seguir, esperando que o leitor que avançou até aqui considere agora que valeu sim a pena.

 

Primeiro movimento: dos fundadores

 

Cadeira 3: Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)

 

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava longe do céu…
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

 

 

Cadeira 8: Belmiro Braga (1872-1937)

 

Semana amorosa

Viu-a domingo. Segunda,

narrou-lhe em cheirosa carta

a sua paixão profunda.

Na terça, esperou; na quarta

 

recebeu este postal:

– Vem à quinta! e o moço, besta,

toma quinta por quintal,

e vai à quinta na sexta…

 

E no sábado essa funda

paixonite estava extinta,

e, triste, chorava a tunda

que apanhou sexta na quinta!

 

 

Cadeira 10: Brant Horta (1876-1959)

 

As águas vão para os rios,
os rios vão para o mar;
e os meus desejos sombrios,
para o céu do teu olhar.

 

 

Cadeira 32: Mário de Lima (1886-1936)

 

Polos

 

Há dois polos na vida, ambos sinistros, ambos
possuindo a gelidez extrema da Sibéria:
o Luxo, a sanguessuga insaciada; e, em molambos,
o rebotalho vil, famulento – a Miséria.

 

Não sei quem seja mais miserável: se os bambos,
broncos vultos que dão, a troco de uma féria
mesquinha, anos de vida, ou se os tipos estrambos
que nadam no ouro desde o berço à urna funérea…

 

Entre esses polos vaga a gente que tem fome
e pede mais amor, mais justiça lhe assista…
E tirita de frio e a lidar se consome…

 

Ai dos pequenos! Ai dos vencidos! À vista
dessa desigualdade imoral e sem nome,
rompe de cada peito um grito socialista.

 

 

Segundo movimento: dos sucessores

 

Cadeira 8: Edison Moreira (1919-1989)

 

Soneto da infância

 

Por sortilégio de Pirlimpimpim,
surpreenderam-me em sonho esta manhã,
os filhos de Perrault, Andersen, Grimm,
clamando pela Infância – sua irmã.

 

Eu que supunha já ter posto fim
a esses amigos, na memória anciã,
eis-me de novo diante de Aladim,
Pinóquio, Chapelinho, Peterpan…

 

Que pretendeis da Infância? (assim lhes falo)
Voltai à paz do vosso azul castelo;
que ao colo de Mãe Preta, em doce embalo,

 

ela dorme tranquila dentro de mim:
– não faças mais rumor, Polichinelo,
e apaga tua lâmpada, Aladim.

 

 

Cadeira 9: João Alphonsus (1901-1944)

 

Cabaré

 

No cabaré à beira da estrada de ferro

Quando o noturno rangeu na noite

A sineta insistente da locomotiva

Associou-se alegremente ao jazz.

 

 

Cadeira 17: Abgar Renault (1901-1995)

 

Na rua feia

Na rua feia,
de casas pobres,
morreu o filhinho daquela mulher
que lava o linho rico
de um bairro distante.
Morreu bem simplesmente,
assim como um passarinho.
O enterro saiu…lá vai…
um caixãozinho azul
num carro velho de 3a. classe.
Atrás dois autos. Dois.
A tarde irá pôr luto
na rua feia,
de casas pobres?
Garotos brincam de esconder
atrás do muro de cartazes.
Lá no alto
vai-se abrindo grande céu sem mancha
cruzeiro-do-sulmente iluminado.

 

 

Cadeira 20: Emílio Moura (1902-1971)

 

Canção

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

 

 

Cadeira 26: Henriqueta Lisboa (1901-1986)

 

Beija-flor

 

Pequenino feixe de nervos

lépido sutil e grácil

em torno da corola esvoaça

Beija-flor todo equilíbrio

no seu trapézio invisível

 

A abrir o leque de plumas

com estrias de safira

Beija-flor arrisca o jogo

no assédio à flor. Mas recua

rápida flecha sem pouso

a um balanço de arbusto

 

Dramazinho melífluo:

coração em conflito

de premência e cautela

Beija-flor investe a custo

e sem perder o galeio

gira oscila dança paira

não desiste mal se atreve

em galanteios e escusas

antes de colher o inseto

que entre pétalas se oculta.

 

 

Cadeira 34: Nilo Aparecida Pinto (1914-1974)

 

O bambu com muita gente

se parece no feitio:

por fora – é belo e imponente,

por dentro – é oco e vazio…

 

 

Terceiro Movimento: dos atuais

 

Cadeira 6: Yeda Prates Bernis

 

Improviso

 

Dom maior é canto

de arcanjos – semibreve.

No princípio, um jubilato

arrebata aleluias.

 

Pouco e pouco, a escala

se despeja em decrescendo

de afinados bemóis

e rasga os dias.

 

Até que o solo de um clarim

– antes novelo de lã,

Fio de aço agora –

estrangula o amanhã.

 

 

Cadeira 21: Elisabeth Rennó

 

A palavra inadimplente

 

A palavra

inadimplente

foge escorrega

não se faz ver

Sem ela o sentido

falha

A folha

imaculada se torna

E o sentimento

que jorra do peito

enrijece emudece

recolhe-se em concha

silente

e desaparece.

 

 

Cadeira 27: Olavo Romano

 

Réquiem

 

No Capão da Traição, batismo e presságio.

Passado o fausto – ainda vivo na pompa dos altares –,

A morte espreita na turbidez das águas.

 

Saia a Procissão das Almas, toda gente perde a calma,

Toquem todas as matracas, que o nosso rio morreu.

 

Preparem-se romarias, as mais fundas litanias, Irmandades, confrarias.

O nosso rio morreu.

 

Junte-se a Ribeiro Bastos, vamos por ruas e pastos,

Tocando tristes acordes para o rio que morreu.

 

Para a Maria Fumaça, agora nada tem graça.

Na Fazenda do Pombal, invoquemos o Alferes

Para sanar tanto mal, chorar o já sem remédio –

A morte chegou ao rio.

 

Vistam-lhe longa mortalha, espantem os maus agouros.

Descanse em paz desse nome.

 

 

Cadeira 40: Maria José de Queiroz

 

Noites brancas

 

Noites brancas sem sossego, Marília.

Marília, noiva do vento.

 

Rico vestido de ouro bordado, Marília.

O noivo foi pro degredo.

 

Rico vestido de ouro bordado, Marília.

Marília… o noivo casou no degredo.

 

Manhã fria de Ouro Preto, Marília.

Que frio faz no teu leito…

 

Coração maior que o mundo, Marília.

Dirceu casou por despeito.

 

Vila Rica de Ouro Preto…

Thomás Antônio Gonzaga…

Maria Joaquina Doroteia de S

 

 

 

Por Jacyntho Lins Brandão,
Professor titular de Língua e Literatura Grega da Faculdade de Letras da UFMG,
Secretário Geral da AML e acadêmico ocupante da cadeira n° 25.