“Chega um momento em que a vida é distância, e tudo é tarde.”

( Abgar  Renault, no poema  “Última  Thule”.)

 

Créditos: Elias Layon

Dona Olímpia – quem diria? – virou tema de escola de samba  da Mangueira e brilhou na Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 1990.  Na verdade, o fato não foi de todo surpreendente, já que Dona Olímpia  era uma figura alegre, carregada de flores e com aquele grande chapéu florido, e senhora de uma boa e  animada conversa. Sua presença  despertava eflúvios positivos; a grande bengala, em feitio de cajado peregrino, era toda ornamentada e aquele imenso chapéu, embora muito usado, tinha  algo de primaveril e de parque num domingo ensolarado.

Pois eis  que a nossa saudosa  Dona Olímpia virou “Sinhá Olímpia” e  ganhou enredo sob o título  de “E deu a louca no barroco”. De fato, o barroco acabou  prestando-se a tudo o que é meio confuso, complicado, meio rococó e “embolado”. Mas o barroco é arte séria, sacra e bela, terreno dos mestres escultores mineiros Hélio Petrus e Elias Layon, moradores de Mariana.

E neste ponto da conversa eu me lembro do trecho de abertura, à guisa de epígrafe, desse livro delicioso  que é “Pierre-Auguste Renoir, meu pai”, do cineasta Jean Renoir:

“O LEITOR – Não é Renoir que o senhor nos apresenta , é a sua própria concepção de Renoir.

O AUTOR – Com certeza. A História é um gênero essencialmente subjetivo.”

O  diálogo acima  vale uma tese de mestrado em História, não lhes parece?  Cá eu não me meto  nessas altas cavalarias. Só monto burrinho manso, como Sancho Pança. E só transcrevo o trecho para aduzir que assim deve ter sido  com a figura de Dona Olímpia tratada na letra, no enredo da Mangueira. Vale dizer: de  certa  forma,  saudável  mistura  de impressões, concepções, imagens, transfigurações, um jogo de cenários do inconsciente  coletivo e outras preciosidades junguianas, sei lá o que digo. E  depressa volto ao meu burrico de trote manso.

A  Sinhá Olímpia dos  sambistas é um quadro da Ouro Preto lírica, de que tratou  Afonso Arinos de Melo Franco ( há a Ouro Preto grave, tratada pela pena do historiador Diogo de Vasconcellos) . Tanta gente escreveu sobre Ouro Preto – até o poeta e cronista Manuel Bandeira lhe dedicou um livro, o utilíssimo “Guia de Ouro Preto”. Naquela cidade nasceu, em 1870, o grande poeta simbolista  Alphonsus  de  Guimaraens, falecido em Mariana em 1921.

Na verdade, a nossa saudosa Dona Olímpia, que as montanhas de Minas não esconderam, era assim como uma espécie de contrafação carnavalizada  de dama antiga, com suas longas saias anacrônicas, bordão  florido e empenachado,  vasto chapéu ornamentado de miçangas e penduricalhos, a fumar um eterno cigarro que todos lhe davam com satisfação.

Ela perambulava pela histórica cidade, especialmente na Praça Tiradentes, muito antes de Ouro Preto tornar-se um grande polo turístico. Era como um vulto legendário de outras épocas, a compor o cenário das belas igrejas e  dos velhos sobrados e solares do tempo da musa Bárbara Heliodora, da outra musa Marília de Dirceu, do ouvidor Gonzaga, dos heróis da Inconfidência, dos embuçados que à noite recomendavam a fuga dos implicados  na conjura infeliz, do tempo do assassinato do poeta Cláudio Manoel na Casa dos Contos…Ele não se suicidou: morreu de “morte matada”, pois era um arquivo vivo da malograda sedição contra o Reino de Portugal.

Dona Olímpia era  uma remanescência, como figura humana ímpar, de uma mítica  Vila Rica do Pilar em cujas ruas, outrora, “retumbaram  hinos”   (Raimundo Correia) , com muito coche fidalgo nas pedregosas  calçadas, sinos batendo e sinhazinhas em flor pelas janelas.

***

Na pia batismal, nossa  famosa  mineira recebeu o nome de Olympia Angélica de Almeida Cotta. Naquele ano de 1990, a Agência O Globo publicou um texto  de que retiro o trecho abaixo, por ilustrativo:

“A partir de meados da década de 40, quando começou suas andanças pelas ruas de Ouro Preto  – com roupas  de cores vivas que misturavam um luxo  de gosto duvidoso com trapos,  o cajado enfeitado  e os cabelos coloridos de azul, vermelho ou cor de rosa, sob os mais extravagantes  chapéus – , a simpática velhinha  de mente fantasiosa, que misturava os tempos  da História, ganhou fama. Para alguns, era louca; para outros, sábia. E há, ainda, os que a consideram  a primeira hippie do Brasil.”

E prossegue o redator ( cujo nome não está registrado) :

“Em seu mundo imaginário, Olímpia acreditava  ser a favorita de Dom Pedro II e parente do Conde d’ Eu. Afirmava que recebera de fidalgos e cavalheiros diversas declarações amorosas e que frequentara  bailes e saraus. Nos últimos dez anos de sua vida, até morrer, em 1976, aos 87 anos de idade,  Dona  Olímpia  transformou-se em atração turística da cidade. Foi muito fotografada  e apareceu até em jornais do exterior; virou  mesmo cartão postal  da cidade.”

A historiadora  Guiomar de  Grammont também cuidou do fascinante  assunto. É de sua lavra o texto abaixo, ilustrado por uma foto de  Dona Olímpia que está no Museu  Casa  Guignard, em Ouro Preto:

“Esfuziante e bela, com sua poderosa presença, Olympia  Cotta  criou um estilo único. Em sua figura reunia, a um só tempo – como  ninguém  jamais  o havia feito antes  – a grandeza das cortes do passado e a riqueza psicodélica do universo  hippie  que coloriu as ruas do Brasil marcado  pela dureza da ditadura. Assim, Olympia  reunia tempos diferentes:  o universo mágico e galante em que se passavam suas histórias e o delírio woodstockiano dos jovens hippies que transitavam pela cidade na época. Ela inventava , ousava, reciclava, misturava papel e cetim, madeira e renda, luxo e lixo. Impossível não olhar para ela quando sua persona  estupenda assomava do fundo de alguma ladeira de Ouro Preto.”

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Tenho nas minhas estantes um singelo e delicioso livro  intitulado “Ouro Preto também para crianças”, de Maria Zélia Damásio Trindade, com  capa  e ilustrações do  consagrado artista plástico  Cláudio Martins, uma edição de 1977 da Editora Lemi, de BH. Com contracapa assinada pela grande  e saudosa escritora Lúcia Machado de Almeida, irmã de Aníbal Machado e autora do celebrado livro “Passeio a Ouro Preto”. Pois bem, nas págs. 85/86, sob o título “D. Olímpia” vamos encontrar um bom painel  da excêntrica personagem:

“Dona Olímpia Cota era figura  conhecidíssima  por todos quantos  visitavam Ouro Preto; focalizada por jornalistas, pintores e fotógrafos em seus trabalhos. Com  seu chapelão, seu bastão todo cheio de papéis coloridos, o cigarro na mão e o  xale  nos ombros, lá estava ela, conversando com os turistas e a gente do lugar.

– Ah ! , “minha nega”! Eu sou sobrinha do Frei Santa Rita Durão,aquele escritor famoso! Família nobre, a minha. Já fui muito bonita e rica. Já, sim! Não viu meu retrato quando moça, ainda não?

E lá ia, pedindo um cigarrinho ou dinheiro aos turistas, proseando e posando com eles.

  1. Olímpia era uma figura simpática, sempre bem acolhida, quer pelos ouropretanos,quer pelos turistas.

Parece que se referem a ela estes lindos versos de Murilo Mendes:

“A viúva de Ouro Preto sobe a rua cantando,

apoiada ao bastão, na cabeça um penacho

de três cores, vestido velho e desbotado

cuja invisível cauda arrasta com desdém.

A viúva de Ouro Preto fala em frases cifradas,

pesa em partes iguais o mito e a realidade,

o passado e o presente, a alegria e a tristeza,

rico e pobre entretém  com igual polidez,

declara  que decide a guerra no estrangeiro.

A  trama de sua vida é feita de fantasmas

que só se extinguirão no seu último dia.”

Maria Zélia esclarece que este é um trecho do poema de Murilo Mendes intitulado “Motivos de Ouro Preto”. E a autora conclui  sua página assim:

“E o seu último dia já chegou.

Que pena que não a conheci!

Dela ficaram nomes de casas comerciais, de uma escola de samba, cartões, esculturas, até personagens de peças teatrais e musicais.

Dona Olímpia já virou História.”

***

Quero registrar  nestas linhas  que o primeiro  livro que conheci  sobre a antiga Vila Rica  foi o “Ouro Preto e conhecendo Ouro Preto”, de Eponina Ruas. Quem foi essa autora? Ela era uma médica pediatra que morava naquela cidade e ia muito à minha  cidade natal  de Mariana. Meus pais tinham com ela boas relações. A Dra. Eponina Ruas, que vi várias vezes andando a pé por Mariana, atendendo aos pacientes, era uma senhora de pequena estatura, discreta, arredia, de pouca conversa e – soube depois – muito culta. Revejo-a, como num sonho antigo, andando pelas ruas, com  sua maleta de médica na mão.

Por falar em Ouro Preto, onde trabalhou o célebre escultor  Aleijadinho, onde versejaram os árcades poetas da Inconfidência, aproveito o ensejo para destacar cinco livros de  importância histórica, sociológica e literária. Esse quinteto compõe a Série Ouro-pretana da Editora Liberdade, que funciona naquela histórica urbe, sob a direção do casal de professores universitários e escritores Arnaldo Fortes Drummond e Maria Francelina Ibrahim  Drummond.

São eles: “Memórias de Ouro Preto”, de Lauro Sérgio Versiani Barbosa e Humberto Dornelas; “Da poesia à reportagem”, de Hermínio Barbosa;  “Sinos de Ouro Preto”, de Arthur de Brito Machado; “Poesia enquanto costume”, de Maria Francelina Ibrahim Drummond (org.) e “Terra adotada: relato de um imigrante”, de Antônio Francisco dos Reis.

***

Assim, conforme ela foi  descrita  linhas  acima,  eu conheci  pessoalmente , nos outroras da minha vida, a impressionante figura de Olympia Angélica de Almeida Cotta. Foi assim que eu a vi numerosas vezes, ao longo de dois  anos, quando,  em Ouro Preto, estudei interno no Colégio Arquidiocesano, em 1956 e 1957. Eu faria 14 anos de idade no fim de 1956.  Era, portanto, pouco mais que um menino, um rapazote.

Naquele tempo havia poucos turistas na antiga Vila Rica, estava longe de acontecer o I Festival de Inverno. Se  durante a semana  o comportamento era bom no internato ( misto de seminário e quartel ) , tínhamos  folga domingo à tarde para percorrer a cidade . Às 18 horas, toque de recolher. Mesmo  com escassos cobres no bolso, só uns caramingaus para um sorvete e um  café  com pão de queijo, era bom zanzar subindo e descendo aquelas  históricas ladeiras. Sempre  encontrávamos  Dona  Olímpia fumando e proseando, rindo e contando casos, com aquela voz meio grossa, rouquenha,  na Praça  Tiradentes, seu point  preferido, seu palco predileto, pois ela era, demente ou sábia, ou ambas as coisas, uma atriz.

Corria a lenda: Dona Olímpia fora uma formosa donzela, muito bonita na juventude. Ficara meio desequilibrada por ter um amor contrariado, era até de  família aristocrática – histórias assim, que passavam de boca em boca para acicatar o imaginário popular e inspirar  artistas e outras almas sensíveis e romanescas. Só um exemplo: sua singular figura extemporânea  seduziu o talento de um artista  como Orózio Belém, que lhe desenhou o retrato  num crayon reproduzido na edição do jornal carioca “O Dia”, de 1º de março de 1990, ilustrando uma reportagem de Rose Esquenazi.

Pois é, minha antiga e risonha  interlocutora transpôs alegremente as montanhas de Minas para, transfigurada num carnavalesco delírio “barroco”, com o nome de Sinhá  Olímpia,  ganhar ainda maior  dimensão  nacional  via rádio, TV, revistas e jornais, o que ela, viva fosse, muito apreciaria, já que, afinal,  sempre foi destaque. E continua sendo uma estrela a brilhar no céu de Ouro Preto, do Itacolomi ao Alto das Cabeças, passando pela  Rua Paraná, Rua Direita, Rua São José, Praça Tiradentes, com o antigo Palácio dos Governadores , a estátua do herói nacional  supliciado no Rio e o Museu da Inconfidência.

Agora, como escreveu o poeta Abgar Renault, “tudo é tarde”. Adeus, Dona Olímpia. O antigo rapazote, hoje quase octogenário e avô de  dois netos e duas netas, sente saudade das nossas amáveis conversas, Dona Olímpia, lendária estrela de Minas…

 

Brasília, 7 / IX/ 2020.