A menina em flor e seu poeta
Angelo Oswaldo de Araújo Santos
A fotografia da menina morta, anjinho acomodado entre lírios no caixão branco, na Diamantina do início do século XX, espantosa obra de arte criada pelo olho armado de Chichico Alkmim, remete à menina que assombra o romance de Cornélio Pena e ao drama de jovens cedo ceifadas do prazer da vida. Aquela infanta que viveu apenas o espaço da manhã, tendo levado Malherbe a enviar a seu pai uma rosa poética em forma de consolação, é o emblema desse drama. Partir é morrer um pouco, diz o poeta Edmond Haraucourt, mas partir para a morte definitiva, quando se vive sob a primeira luz da aurora, é deixar uma dor tão profunda que muita vez nada há que a desfaça. Resta a constatação de que mesmo as mais belas coisas do mundo têm o pior destino, como reconhece o verso de Malherbe.
Essa tragédia e essa dor estão no cerne da poesia de Alphonsus de Guimaraens, marcada pela partida precoce da noiva e prima do poeta, Constança, a Constancinha, filha caçula do escritor Bernardo Guimarães. Na poesia brasileira, não há outro idílio, nem outro drama comparáveis a essa brutal separação e à sagração da amada morta como musa.
O romancista de “A Escrava Isaura” havia apresentado as duas jovens filhas a Dom Pedro II, na visita imperial a Ouro Preto em 1881, dizendo ao soberano que elas eram a sua melhor obra. Constancinha, sem dúvida, seria a obra prima. Em seu diário, o imperador anotou que era muito bonita. A linda adolescente logo encantou o olhar de um primo, Afonso Henriques da Costa Guimarães, sobrinho-neto de Bernardo, de modo que o noivado foi de pronto vislumbrado. Mas a tuberculose, precursora da indesejada das gentes, levou a menina de 17 anos, em fins de 1888, e feriu para sempre o coração amoroso de Alphonsus de Guimaraens. Autor de “Setenário das Dores de Nossa Senhora”, quem conheceu a dor como ele? “Dileto entre os Diletos, Eleito entre os Eleitos, Perfeito entre os Perfeitos”, conforme a saudação que lhe fez José Severiano de Rezende, Alphonsus sublimou na musa morta a figura da mulher amada, ao contrário do poeta contemporâneo e amigo, exasperado entre a contrição e a mágoa, a prece e a blasfêmia.
Quase seis séculos depois, ele reviveu o drama que está na origem da obra maior de Dante Alighieri:
Ita n’è Beatrice in l’alto cielo,
Nel reame ove li angeli hano pace…
Alphonsus passou a viver a sina dos versos de Verlaine, autor de sua predileção:
Tout seul! et des pensers mélancoliques vont
Et viennent dans mon rêve où le chagrin profond
Évoque un avenir solitaire et fatal.
No belo livro que aqui temos, escrito com respeito e curiosidade, fascínio e zelo, como quem resgata o mais profundo segredo de família num cofre cheio de joias, não é o poeta solitário que reaparece como o pastor Dirceu sem a sua Marília – Gonzaga, degredado em Moçambique, faleceu em 1810 e Maria Doroteia viveu em Ouro Preto até 1853 – , mas, sim, a própria musa ressurgida em carne e osso para assumir um protagonismo inédito. Com largos gestos de menina moça, feliz e radiosa, a brincar e enviar cartas, perceber a vida que passa e fruir as alegrias da juventude, Constancinha revela-se por inteiro.
Afloram a sua liberdade de pensar, o gosto da leitura, o corte abolicionista e por certo republicano. Percebe-se o senso crítico de uma formosa debutante. Na flor da idade, a linda tulipa azul saída de um sonho é uma jovem que deseja viver intensamente. Não é a noiva perdida na câmara ardente, porém a ninfa luminosa que vive em plenitude, seduz e inflama o poeta.
Ao contar a história, que se entretece em fragmentos pela poesia de Alphonsus e se redimensiona em cartas até agora quase desconhecidas, o poeta Afonso Henriques de Guimaraens Neto retorna à adolescência do avô e retoma os idos daquele último quartel do Oitocentos em Ouro Preto, no Alto das Cabeças. À sombra da Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos e São Miguel e Almas, junto ao casarão de Bernardo Guimarães e em meio às ruidosas quermesses do jubileu de setembro, ele quer presenciar o colóquio entre Constança e o jovem enamorado. Ao resgatar a emoção do encontro que, embora breve, sangrou o coração do cantor da “Pauvre Lyre”, Afonso Henriques acaba por descobrir uma menina inteligente como a Helena Morley de Diamantina e apaixonante como a Capitu surpreendida pelo velho Machado a pentear os cabelos com os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” pousados no espelhinho de pataca.
Afonso Henriques acompanha o avô na caminhada desventurosa, raras vezes alvissareira, que ele levou à frente após a despedida de Constancinha. Foram quase sempre momentos duros e penosos, entre São Paulo, Ouro Preto e Conceição do Serro, hoje Conceição do Mato Dentro, onde casou-se com Zenaide de Oliveira, de família conceicionense e serrana, até Mariana e o instante final, a poucos dias de completar 51 anos. Zenaide e Alphonsus tiveram 15 filhos. A última filha, nascida em 8 de março de 1920, recebeu o nome de Constança, de pronto chamada de Constancinha, e veio a falecer em 16 de maio de 1921, logo seguida pelo pai. Alphonsus morreu na madrugada de 15 de julho, entristecido e debilitado pela partida de Constancinha e a fatalidade do nome. Legou “aos crentes do amor e da morte” a obra que se reveste, sempre mais, de interesse e admiração, como podemos sentir neste ensaio esplêndido do neto poeta. Decifrador do código alphonsiano, ele traduz e faz ressoar o colóquio entre o Solitário de Mariana e a Dona Mística.
O convite de Afonso Henriques para trazer aqui uma palavra de abertura muito me sensibilizou, pela poesia que compõe e com a qual honra o avô e o pai, assim como pela nossa amizade. Laços ancestrais nos unem. Na “Escada de Jacó”, série de sonetos em ascensão, em que cada verso refulge como uma chama votiva, Alphonsus de Guimaraens Filho escolheu, no remate do soneto dedicado a meu avô, José Oswaldo de Araújo, o círio que cintila no mausoléu do poeta, no campo santo de Sant’Ana, em Mariana: “A minh’alma é uma cruz enterrada no céu”. A narrativa de Afonso Henriques e o seu sentimento da poesia iluminam-se do fulgor desse crucial luzeiro. Faltava este livro, que agora desvela a adorável Constancinha e enriquece a biobibliografia do nosso grande simbolista, assinalando o centenário de sua subida aos céus.