NO TEMPO DO CARRO DE BOI
Danilo Gomes
“Com o marchar dos anos a felicidade surge
no olhar para trás, no cobrir o passado com
a memória.” (Nelson Palma Travassos, no
livro “Quando eu era menino…”)
O carro de boi é uma remota lembrança do meu tempo de menino, no interior de Minas. Não só vi vários deles, como “andei” em alguns. Eu e meu amigo de infância, o saudoso Jeronimo Wathos Mol Santos, da minha idade, e que faleceu aos 57 anos, deixando viúva, filhos e uma netinha.
Eu estava na casimiriana idade de oito, nove anos. Passávamos férias em fazendas de amigos de meus pais, como Nico Mol, Zinha Rôlla e Bilú de Castro, avô das poetas Marilda Tropia de Barros e Marisa de Castro Godoy. Essas fazendas ficavam no vasto município de Mariana, com seus muito distritos, dentre eles Bento Rodrigues, arrasado pela barragem da Samarco, em 2015.
Pegávamos o trem de ferro na estação ( de 1914), às cinco horas da manhã, de guarda-pó e com matula de guloseimas. Apeávamos nas estações de Gesteira, Goiabeiras ou Crasto (assim, Crasto mesmo). Férias inesquecíveis, essas dos fins da década de 1940,começos de 1950, nas fazendas, encantador mundo rural, bucólico, pastoril.
Nas claras manhãs do alvorecer de nossas vidas, pulávamos nos carros de boi, para passeios pelas campinas. Eu me lembro do sol e do vento e do agudo chiado ou cantiga do rudimentar veículo. Foram alguns dos meus muitos momentos Casimiro de Abreu… Eu hoje os refaço no silêncio das noites, num exercício de sonho, alumbramento e fantasia. Tive muitos momentos de medo, de angústia, mas também de infância feliz.
Por falar em infância, aqui me recordo de um poético trecho do livro “Espelho do príncipe – Ficções da memória”, do poeta, embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e Silva , trecho que me remete a um tempo da fraca e amarelenta luz elétrica com que convivíamos:
“Nas noites comuns, acendiam-se lamparinas, candeeiros e velas. Os adultos vinham para a varanda, conversar. As crianças brincavam no pátio ou contavam as estrelas.”
Avanço no tempo. Estou em 2004, na cidade de Ponte Nova,MG. Na casa do Dr. Salvador Ferrari, já idoso médico, poeta, cronista e biógrafo do Cardeal Motta, tio de sua mulher, a linda Francisca de Vasconcellos Motta Ferrari, Chiquita, então já falecida e sua musa imortal.
Lá fomos almoçar, no dia 20 de janeiro, a escritora Aparecida Simões, Presidente da Academia de Letras de Viçosa, e a escritora Amélia Pinto Coelho, viúva de Nilon Gomes e autora do pequeno e precioso livro “O carro de boi e sua história”, que me ofereceu com amável dedicatória.
Naquela obra, a autora elabora um breve histórico daquele milenar meio de transporte, que ela conheceu bem na infância. Discorre sobre os termos técnicos de toda a engrenagem do rústico veículo e ainda publica nostálgicos poemas de sua autoria. Um belo livro de apenas 42 páginas, editado em 1996 pela Grafcolor, de Ponte Nova. Na apresentação, o médico e escritor Mário Clímaco recorda o trecho em que o brilhante Joaquim Nabuco ( dito Quincas, o Belo) evoca os carros de boi de sua infância na fazenda Massangana, na obra-prima que é “Minha formação” :
“Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido dos grandes carros de bois.”
O pesado e prestante veículo é também recordado pelo escritor mencionado na epígrafe deste escrito, o paulista Nelson Palma Travassos,nascido em 1903. No seu livro, ele está presente nas páginas 45 a 47. Para ele o carro de boi era “a poesia das estradas”…
Conversei sobre o livro de Amélia com o escritor Napoleão Valadares, nascido em Arinos, MG, em 1946. Nasceu numa fazenda. E continua fazendeiro lá na sua querida Arinos, embora resida em Brasília há coisa de meio século. Quando menino, Napoleão foi guieiro de carro de boi e conhece o assunto profundamente, desde a nomenclatura de termos técnicos até a magia poética que envolve a vida rural e o velho carro de boi. Que, aliás, ainda roda pelos nossos sertões.
No mais recente livro de Napoleão Valadares, intitulado “Do sertão”, encontramos o conto “Torcida do Cafundó”, focado no carro de boi. Em deliciosa linguagem coloquial-sertaneja, mas dentro dos cânones da ficção, o consagrado autor escreve:
“Carro de boi teve sua época, figurando como o principal meio de transporte de algumas regiões. Utilizavam-se tropas de cavalos e burros, mas o carro-chefe do transporte era o carro de boi.(…) Tinham como curiosidade roceira o fato de quase todas as peças terem seus nomes começados com a letra c: canga, canzil, cabeçalho, chavelha, cheda, cocão, cantadeira, cambota. E o próprio carro.E a cantiga…”
À pág. 69 o autor prossegue:
“E um dia, falando sobre bois de carro, Tenté e Vadu emendaram conversa até chegarem aos seus próprios, cada um apontando qualidades. Tenté tinha um curraleirão amarelo, chamado Chatinho, afamado em muitas léguas das beiras da Serra do Meio. E Vadu tinha um chitado de roxo, meio cumbuco, por nome Chitão, de fama esparramada pelas bandas do Cafundó e do São Miguel. Acabaram combinando para botarem o boi do Tamboril e o do Cafundó numa disputa.”
Só não vou contar que boi, puxando outros, ganhou a corrida, com o povaréu, lá fora, em cima da ladeira, depois da Gameleira, aplaudindo com entusiasmo de Fla x Flu. Ou de Atlético x Cruzeiro.
A mim e ao fraternal amigo Napoleão Valadares nos une o encantamento do carro de boi chiador e cantador da nossa infância, nas estradas de terra, entre morros, vargens, campinas, sob o faiscante sol da aurora de nossas vidas.