O Múltiplo Drummond

Rogério Faria Tavares – Jornalista. Doutor em Literatura. Presidente da Academia Mineira de Letras.

Os cinco livros de Carlos Drummond de Andrade lançados no final de 2020 pela Companhia das Letras dão saudável oportunidade para retomar o contato com a sua prosa e perceber no que ela ajuda a iluminar a sua obra, no centro da qual está, sem dúvida, a construção poética. Sempre acompanhados de reflexões finais esclarecedoras, assinadas por estudiosos; de notas explicativas sobre a genealogia de cada texto; de uma lista de leituras recomendadas; da cronologia biográfica e de um ótimo índice onomástico, os volumes são eficientes fontes de pesquisa e consulta sobre o legado drummondiano, além de leitura fluida e agradável.

O mais antigo deles, a primeira incursão do autor fora da poesia, “Confissões de Minas”, de 1944, ficou conhecido pela estrutura heterogênea, mesclando crítica literária, perfis jornalísticos, ensaios breves e até mini contos, a exemplo do que fez Manuel Bandeira, em 1937, com “Crônicas da Província do Brasil”. Na introdução, Drummond reverencia a prosa, chamando-a de ‘linguagem de todos os instantes’, exercício capaz de incorporar o tempo e, mesmo, de salvá-lo, como ele tenta fazer, promovendo a reunião de textos escritos em épocas variadas, o primeiro em 1925 e o último no ano da publicação da obra, em arco temporal abrangente, capaz de abrigar desde as memórias da infância, no interior mineiro, ou da juventude, em Belo Horizonte, até as referências à Segunda Guerra, durante a qual o volume veio à luz.

A referência ao estado natal não está só no título, percorrendo o tomo do começo ao fim, e animando seções como ‘Na rua, com os homens’, em que relembra companheiros como Alberto Campos, Ascânio Lopes, João Guimarães, Abgar Renault e Emílio Moura; ‘Confissões de Minas’, em que escreve sobre Itabira (‘Vila de Utopia’ e ‘Teatro daquele tempo’) e Sabará (‘Viagem de Sabará’), texto fundamental para compreender como se posicionava em relação ao projeto modernista de Mário de Andrade, sobretudo quanto ao passado colonial brasileiro e algumas de suas figuras emblemáticas, como o Aleijadinho; e ‘Caderno de notas’, quando escreve, em ‘A voz pelo telefone’: ‘Mas nós estamos em Minas Gerais, Brasil, país de caminhos fechados, país irremediável…’ , em frase que impressiona pela atualidade.

“Passeios na Ilha”, de 1952, situa o seu autor sempre a uma distância de segurança do mundo ao redor, num território em que, como ele mesmo diz, ‘ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente’, numa atitude de ‘fuga relativa’, considerada a ciência e a arte do bem viver. Formado pelos textos publicados no Suplemento Dominical do “Correio da Manhã”, o livro traz análises críticas apuradas de poetas admirados por Drummond, como Manuel Bandeira e Raul Bopp, e preciosa valorização de nomes então pouco divulgados, como Américo Facó, Joaquim Cardozo, Sylvio da Cunha e Maria Isabel, além de mineiros como João Alphonsus, Emílio Moura (de novo), Henriqueta Lisboa, Alphonsus de Guimaraens Filho, Beatriz B. Vasconcelos e Godofredo Rangel. Considerada pelo itabirano um conjunto de divagações despretensiosas, um exercício sem método, inclui, ainda, artigos que evocam Minas Gerais, como “Notícias Municipais”, em que são folheadas as páginas do velho “Correio de Itabira”; “Rosário dos Homens Pretos”, que trata das irmandades formadas pelos negros das cidades históricas do estado, no período colonial; “Colóquio das Estátuas”, sobre os profetas esculpidos pelo Aleijadinho, em Congonhas do Campo, e a célebre “Contemplação de Ouro Preto”.

Lançado em 1966, “Cadeira de Balanço” foi o terceiro livro de crônicas de Drummond, depois de “Fala, amendoeira” (1957) e de “A bolsa e a vida” (1962). Seu título mais uma vez remete ao ponto de onde ele lança seu olhar sobre as coisas, apreciando o repouso e a contemplação serena da vida, por um lado, e o prazer do movimento, por outro. Na apresentação, os leitores são cordialmente convidados a sentar, talvez numa sala de visitas, para ouvir a voz de quem Sérgio Rodrigues chama, no posfácio, de ‘cronista de calça comprida’, em contraponto a outros, mais informais: ‘(…) era como se Sabino e Braga escrevessem de bermuda, de sunga’. Já os textos drummondianos, ainda que leves e bem humorados, adequados ao consumo rápido e sem compromisso dos leitores da imprensa diária, estão em outro patamar: expõem, como opina o crítico, um maior repertório de timbres e artimanhas, ‘alcançando uma latitude e uma longitude normalmente inacessíveis aos seus colegas’, fazendo do responsável por eles um ‘grande explorador das regiões fronteiriças de um gênero literário pouco definido’ e muitas vezes tido como menor.

“Tempo vida poesia – confissões no rádio” é a coleção das conversas que Drummond manteve com a amiga Lya Cavalcanti, em oito episódios dominicais veiculados pela PRA-2, Rádio Ministério da Educação e Cultura, no programa “Quase memórias”, em 1954, ganhando sua primeira edição impressa somente em 1986, um ano antes da morte do escritor. Em dicção descontraída, ele constrói diálogos bem divertidos com a sua interlocutora, em raro momento de exposição dos aspectos mais privados de sua personalidade. Auto irônico, capaz de rir de si mesmo, aqui o poeta discreto e reservado dá lugar a um intelectual aberto, descomplicado. Quando a entrevistadora pergunta se ele vai abrir sua vida diante de todo mundo, a resposta é rápida: ‘(…) você acha que ela (a minha vida) é menos publicável do que a dos outros?’ Para completar, logo adiante: ‘Sossegue, Lya. Não vou dar um show de mim mesmo ao público. Nem o público havia de gostar, pois afinal eu não desintegrei o átomo, não ganhei a Segunda Guerra Mundial, não descobri a penicilina… Que é que me pode ser atribuído na história da humanidade, ou mesmo da contracultura? Nada. Rabisquei papelório burocrático e uma versalhada do tipo livre.’

“Moça deitada na grama” saiu em 1987, organizado por Drummond pouco antes de seu falecimento. Ameno, suave, descompromissado, o livro refaz o percurso do cronista pelo Rio de Janeiro, aqui retratado nos detalhes menos importantes de seu cotidiano, nas belezas escondidas na interminável soma dos dias iguais. Estão presentes o verão, os sucos, um encontro na calçada, os amáveis assaltantes, um pouco de nada e de tudo, como é o título de um dos textos, em que se lê: ‘(…) escrevo pelo prazer de redigir o desenvolvimento do que me vem à cabeça com a espontaneidade de um passarinho voando lá fora, entre um fícus e outro fícus’. E, logo à frente: ‘São tantas! as possibilidades de direção desta minha vadiagem vocabular que eu gostaria de ser múltiplo de mim para engajar-me em todas elas.’

E múltiplo de si Drummond foi, ainda que muitos enfatizem apenas uma de suas dimensões. Em trinta anos, assinou mais de seis mil crônicas em jornais, num apostolado incansável em favor da palavra prosaica, refém e redentora do tempo, ainda que porosa e docemente permeável ao sopro poético de que seu espírito sempre se constituiu. Atento e sensível ao miúdo e ao passageiro, não se alimentou exclusivamente da alta inspiração concedida por musas sofisticadas, amantes do sublime e do eterno. Também bebeu, compassivo, das águas mais triviais, indispensáveis para entender de que frágil matéria é feita a espécie humana, essa aventura precária que insiste em prosseguir. Vistos na perspectiva fornecida pelos anos e pelo que a fortuna crítica já foi capaz de depurar, os cinco livros novamente postos em circulação no Brasil dão, por tudo isso, provas reiteradas da riqueza da escrita drummondiana, que, se imortalizada na Poesia, em nada deixou a dever na Prosa, ao contrário do que opinaram alguns poucos, desejosos de sensação, polêmica e popularidade.