ANTIGA ESTAMPA
Danilo Gomes
“A noite não estava muito escura, mas não havia lua. Viam-se algumas estrelas, mas não muitas. Quando chegaram ao fim da alameda, viram o espectro.” ( Daniel Defoe, “O adivinho na feira de Bristol”, no livro “Contos de fantasmas.”)
Há tempos, de repente, no meio da noite de sábado, começo da madrugada, com minha cerveja e meu charuto Suerdieck ( da Bahia) , lendo uma crônica de Lourenço Diaféria ( o grande cronista de São Paulo), me veio uma súbita, nostálgica vontade de comprar um chapéu na “talvez mais antiga ( 1914) chapelaria em atividade em São Paulo, a Chapelaria Paulista, na Quintino Bocaiúva, 94, na veia do Centro Velho.” São, como se nota, palavras do consagrado cronista Lourenço Diaféria, com quem conversei uma vez, por telefone, em São Paulo, ele com uma gripe danada.
Por falar nisso, São Paulo sempre contou com numerosos grandes cronistas. E me limito à capital. Menciono apenas o poeta Vicente de Carvalho, Jacob Penteado, José Agudo, Sylvio Floreal e José Americano, senão a crônica vira relatório. Além do Lourenço Diaféria, ali temos os sempre nostálgicos Frederico Branco e Heródoto Barbeiro, mais os mineiros lá radicados e vivenciando a saga e a mitologia da cidade, como Humberto Werneck e Ivan Ângelo.
Além de cultor da crônica, sou adepto de chapéus e de bengalas. Nestes tempos de avanços tecnológicos vertiginosos, me sinto um homem de décadas passadas, quase de volta à época da vacina obrigatória, da peste bubônica e do cinema mudo, com Buster Keaton e Carlitos, mais O Gordo e o Magro e Os Três Patetas, e nossos Grande Otelo e Oscarito estreando e estrelando. No mínimo – e é verdade- , sou do tempo da tabuada, do bilboquê, do emplastro Sabiá, do Biotônico Fontoura, da Emulsão de Scott, das “miraculosas” pílulas de vida do Dr. Ross, do óleo de fígado de bacalhau, do misterioso linimento de Sloan, do horrível óleo de rícino, da galocha, da capa espanhola azulona e sem mangas, da japona também azulona e do prestante Almanaque Capivarol, com ingênuas charadas e cartas enigmáticas.
Como se deduz, já estou meio gasto, meio sambado, com problemas na coluna cervical, um pouco de artrose e muita saudade dos tempos que se foram.
Vim ao mundo numa cidade antiga. De tanto ali ver, na minha meninice ( e depois em Belo Horizonte), homens de bengalas, chapéus e guarda-chuvas ( mesmo em dias de sol) , tornei-me um deles, por mimetismo meio nostálgico, meio melancólico.
Comprando mais um chapéu, dessa vez na tradicional Chapelaria Paulista, talvez eu quisesse repetir meu pai Daniel, que usava chapéus das marcas (ainda não se dizia griffe) Cury , Prada e Ramenzoni. Para falar a verdade, não dispenso nem o lenço branco no bolsinho do paletó, o que era moda antigamente.
Às vésperas do ano 2000, tempos de informática ( que já se delineou como robótica e cibernética), do raio laser, da internet, de aventuras espaciais que Júlio Verne entressonhou, sou, na verdade, um homem atrelado à década de 1940, 1950, saudoso dos bondes, dos footings nos jardins e nas avenidas, das retretas de bandas de música nas praças arborizadas a capricho, do popular cine-grátis, do perfume das damas-da-noite nos jardins das casas belle-époque de Belo Horizonte, antiga Curral del Rey. Podem me chamar de velhusco. Não me avexo, não.
À noite, o ronceiro rumor do bonde Pernambuco deslizando sob a vigilância dos guardas-noturnos, no então tranquilo Bairro dos Funcionários, que virou Savassi, por causa da ótima padaria dos três simpáticos irmãos Savassi. O cheiro bom do pão fresco era inebriante. Grande era a colônia italiana em Belo Horizonte, berço do time de futebol Palestra Italia, depois Cruzeiro.
Conheci minhas avós Sinhá ( materna) e Maricota ( paterna), mulheres do século passado, mães de tantos filhos e filhas, heroínas de tantos desassossegos. O avô materno não conheci: morreu em 1928; o outro, recatado, foi apenas uma sombra me olhando do alto da escada de seu sobrado marianense: morreria em 1947.
Sou um tipo antigo, com meu chapéu e minha bengala rústica, sem castão de prata. Meus mortos me circundam o tempo todo, seus rostos vão se esmaecendo com o esgarçar do tempo.
E agora , com essa conversa retrô, passando três dias em Belo Horizonte, me bateu uma vontade de ir beber cerveja no antigo Bar do Izidoro , na Praça da Igreja da Boa Viagem, bar que conheço desde eu rapazote. Será uma volta ao passado, uma breve viagem no tempo. O dono, por certo já enrugado, cabelos bem brancos e um pano, uma toalha , no braço, ainda se lembrará de mim, nas primeiras calças compridas, o menino-moço da Rua dos Inconfidentes, 1041, casa de minha rígida avó Sinhá e meu afetuoso tio Aldo, vulgo Laspinho? Ainda estará lá, comandando seu velho barco boêmio? Depois de tantos anos? Eu frequentemente ia lá buscar cervejas para tio Laspinho, freguês de caderno. Levava ao bar uma sacola com cascos escuros.
Adentro o antigo Bar do Izidoro. Sou um senhor de meia-idade, de chapéu cinzento Ramenzoni. Pai de dois filhos, morador de Brasília. O bar não perdeu de todo seu ar antigo, senão perde o charme. Ainda é um reduto de boêmios.
Peço uma cerveja casco-escuro. No relógio da Boa Viagem, o carrilhão anuncia : são apenas 9 da noite. Uma noite clara, sem lua e de poucas estrelas. O viajante do tempo como que vê chegar, devagarinho, o primeiro fantasma da noite. São fantasmas mansos, já se foram há um bom tempo. Talvez ainda sintam uma sede da pinga e da cerveja e uma saudade daqueles inesquecíveis torresmos e daqueles deliciosos bolinhos de bacalhau de outrora, à espera do azeite.…
Encosto a bengala no espaldar da cadeira ao lado. Contrariando o manual de civilidade e boas maneiras e a tradição do bom-tom , mantenho na cabeça o velho chapéu Ramenzoni. É como se o antigo menino estivesse em casa. Do ar puro que vem de fora, do sossego da praça, chega um cheiro levemente adocicado de dama-da-noite…
Peço outra cerveja. Dessa vez, o próprio Izidoro vem me servir. Olho-o com um certo espanto. Há quanto tempo não o vejo! Está pálido, com ar de cansado. O tempo passa para todos e sobre todos. Mas me olha paternalmente, como se me dissesse: “Ah, o sobrinho do Laspinho !”. Há quantos anos não o vejo, meu Deus! Pela porta da frente, entra um frio tão frio que parece não ser deste mundo…Mas é apenas princípio de maio. Izidoro destampa a garrafa, com um discreto sorriso. Como está pálido ! Izidoro Soveral, me lembro do sobrenome. Agradeço. Tomo os primeiros goles. A friagem que vem de fora parece penetrar a alma do antigo rapazote. Sinto um arrepio de cerveja muito gelada…O velho Izidoro, homem educado, faz uma leve reverência, em cumprimento. E, antes que eu puxasse conversa, se vai, por certo, rumo ao balcão, ao seu posto de comando, junto à grande caixa registradora de fabricação inglesa. Num interlúdio de alguns segundos, olhei para o balcão. Lá já não estava a vetusta e imponente caixa registradora. O que havia era um computador, com um homem quarentão no comando. Pouco depois, ouvi o carrilhão da igreja de aspecto gótico anunciando as 10 horas.
Sim, era uma noite não muito escura, sem lua e com poucas estrelas, como no conto de Daniel Defoe. Aos poucos, instalou-se no Bar do Izidoro um frio que foi aumentando, quase fantasmagórico, vindo não sei de onde. Talvez do antigo balcão. Talvez do grande jardim da Igreja da Boa Viagem, em frente. Foi bom ter trazido o velho chapéu. Chamei pelo garçom. Pedi a última cerveja, que veio gelada de arrepiar…