Neste nosso tempo, algo invisível assusta o mundo, produzindo uma pandemia, enquanto cientistas buscam identificar exatamente o que é e como eliminar a “coisa” que ora infecta e mata muitos milhares de pessoas. Assim, não traria novidade o romance “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector. A obra da escritora ucraniana que viveu no Brasil até partir é consentânea com esta hora e suas circunstâncias.
A psicóloga e escritora, que reside em Brasília, Vera Lúcia de Oliveira, de reconhecido prestígio e notório saber, fez palestra na Associação Nacional dos Escritores e marcou uma noite na capital da República. O romance conta o caso de uma mulher, escultora, sem marido e filhos, que vive em apartamento de cobertura no Rio de Janeiro. Sua empregada se demite e ela se sente à vontade para percorrer aquilo que lhe pertence.
Visitando o ex-quarto de Janair, verifica que tudo está em ordem, limpo, mas se espanta com um desenho a carvão de um homem, uma mulher e um cão. As figuras fazem pensar em múmias que vêm de outro tempo. Percebe que há energia no desenho e um sentimento de ódio, “uma espécie de ódio isento, o pior ódio”, de alguém socialmente invisível, “mas que seria o da antiga empregada”.
Aquela negra-rainha africana parecia estar ali para julgá-la. “O quarto divergia tanto do resto do apartamento. Para entrar nele era como se antes tivesse saído de minha casa e batido a porta, “oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia.
G. H., a protagonista, sente uma cólera inexplicável e resolve lavar o quarto, jogando baldes e baldes de água para afogá-lo; “eu queria matar alguma coisa ali”. Entrei no quarto-caverna, onde o único ruído residia na “ressonância do silêncio roçando o silêncio”, “um silêncio acumulado de séculos”, “silêncio que é a respiração contínua que ouvimos do mundo”. G. H. sente os primeiros sinais do desabamento nela de “cavernas subterrâneas que ruíam” sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas.
Percebeu precisar de alguém que entendesse o que acontecia. Quedou-se na análise do desenho e, ao abrir a porta do guarda-roupa, sofre um susto enorme ao defrontar-se com uma barata – grande e supostamente velha. Horrorizada, já que tanto temia baratas, regressa ao tempo imemorável da formação da vida na Terra, quando todos os seres ganhavam sua primeira forma.
Sente no mais íntimo de si mesma: “Uma barata tão velha que era imemorial”. (…) elas já estavam na Terra, e iguais à de hoje, antes mesmo que tivessem aparecido o primeiro dos dinossauros; saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e vivas, saber que elas testemunharam a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço, e depois durante o grande recuo das geleiras ‘há trezentos e cinquenta milhões de anos se repetiam sem se transformarem”. E era só uma barata!