A campainha tocou três, quatro vezes, impaciente. ‘A sua neta preferida chegou, vovó. E veio para ficar!…’, cantarolava, do lado de fora, a voz ainda adolescente, mas já decidida. Entre medicamentos e seringas, Renata franziu o cenho, prevendo dias tumultuados. A menina não era fácil: ‘Mimada, cheia de vontade, acha que pode fazer o que quiser, em todo lugar’, comentava com as outras enfermeiras em seus grupos de whatsapp. ‘Renatita, querida, que saudade, que alegria. Sentiu minha falta?’ ‘Você avisou sua mãe que está aqui, Glória? Se não ligar para ela, eu vou ter que avisar. A saúde de sua avó é muito delicada. Você não pode colocá-la em risco. Você se cuidou nos últimos dias?’. ‘Você acha que eu sou louca, Renatita? Eu pareço, mas não sou. Fiz tudo certinho. Eu me cuido! Take it easy, Renatita, take it easy!’ Avançando pela sala de visitas, sem cerimônia, no seu rastro deixava o barulho de sempre, esbarrando nas quinas, derrubando porta-retratos, entoando, desafinada, o que escutava pelo fone de ouvido, um sucesso qualquer do momento.
O cabelo conservava o azul das outras vezes, mas a mochila era bem maior, e parecia pesada. ‘Vim passar a quarentena com a senhora, vovó. Ficar esse tempo todo na minha casa, a senhora sabe, é impossível.’ Djanira não entendeu direito o que lhe dizia a neta, fixando sua atenção no piercing com que a garota se enfeitava. ‘Será que ela consegue respirar com essa argola no nariz?’, pensou, antes de receber uma flechada de beijos molhados na face comida pelo tempo. ‘Que quarentena, Glória?’, teve forças para perguntar. ‘Tem um vírus solto por aí, vovó. A senhora não ouviu falar? Agora ninguém mais pode sair de casa’.
Já na cozinha, a menina catou o que queria para o sanduíche, não sem reclamar com Renata sobre a falta do catchup. Em um minuto, engoliu um pão com tomate, alface, um bife de frango grelhado e a maionese disponível. Voraz, ainda deu conta de uma ou duas maçãs, enquanto procurava pelos refrigerantes inexistentes no apartamento onde agora resolvera se refugiar. A cuidadora não conseguiu esconder a apreensão: ‘Você tem certeza de que vai aguentar ficar aqui esse tempo todo? Os hábitos de sua avó são muito diferentes do seu’. ‘Vovó me ama, Renatita. Ela vai adorar conviver comigo esses dias. Pode crer. Eu quero saber é da coca-cola. Aqui não tem coca-cola?’. ‘Você não pode com açúcar, Glória, toma tento’, advertiu a enfermeira, habituada aos diabéticos da família. Instalando-se no quarto ao lado, um dia ocupado por sua mãe, logo arranjou o espaço para abrigar suas coisas. Jogou os dois pares de tênis num dos cantos e pendurou os acessórios num dos cabides que resgatou do fundo do armário. Enquanto tirava a roupa, doida para tomar banho, acompanhava a sucessão frenética de notícias no aparelho de tevê que acabara de ligar. ‘Ele é potente mesmo, pegou o planeta inteiro!’ Nua, mirou-se no espelho, conferindo as tatuagens. Abrindo as costelas, imaginou mais uma, na altura do pulmão: ‘aqui, um coronão, bem charmoso. Que tal, Glorita?’
Uma semana depois acordou incomodada, o pescoço empapado em suor. Renata mediu-lhe a temperatura, confirmando a febre. A tosse seca chegou na mesma noite, importunando-lhe o sono. O ar começou a lhe faltar nas horas seguintes, deixando a cuidadora apavorada. Assintomática, Djanira passou por tudo incólume, alheia à tensão circundante. Passaria ainda uma década e meia perguntando à Renata porque sua neta preferida não a visitava mais.