“A noite não estava muito escura, mas não havia lua. Viam-se
algumas estrelas, mas não muitas. Quando chegaram ao fim da alameda,
viram o espectro.”
(Daniel Defoe, “O adivinho na feira de Bristol”, no livro
“Contos de fantasmas.”)
De repente, no meio da noite de sábado, começo da madrugada, com
minha cerveja e meu charuto Suerdieck (da Bahia) , lendo uma crônica de
Lourenço Diaféria (o grande cronista de São Paulo), me veio uma súbita,
nostálgica vontade de comprar um chapéu na “talvez mais antiga (1914)
chapelaria em atividade em São Paulo, a Chapelaria Paulista, na Quintino
Bocaiúva, 94, na veia do Centro Velho.” São, como se nota, palavras do
notável cronista Lourenço Diaféria, com quem conversei uma vez, por
telefone, em São Paulo, ele com uma gripe danada.
Sou adepto de chapéus e de bengalas, que uso nos fins de semana ( as
bengalas, só em casa). Na casa ( melhor diria, no rancho ) dos 54 anos,
nestes tempos de avanços tecnológicos vertiginosos, me sinto um
homem de décadas passadas, quase de volta à época da vacina
obrigatória, da gripe espanhola, da peste amarela, da peste bubônica e do
cinema mudo, com Buster Keaton e Carlitos, mais O Gordo e o Magro e
Os Três Patetas… No mínimo – e é verdade- , sou do tempo da tabuada,
do bilboquê, do emplastro Sabiá, do Biotônico Fontoura, da Emulsão de
Scott, das pílulas de vida do Dr. Ross, do óleo de fígado de bacalhau, do
horrível óleo de rícino e do prestante Almanaque Capivarol.
Como se deduz, já estou meio gasto, meio sambado, com problemas
na coluna cervical, um pouco de artrose e muita saudade dos tempos que
se foram.
Vim ao mundo numa cidade antiga, Mariana, MG. De tanto ali ver,
na minha meninice ( e depois em Belo Horizonte), homens de bengalas,
chapéus e guarda-chuvas ( mesmo em dias de sol) , tornei-me um deles,
por mimetismo meio nostálgico, meio melancólico.
Comprando mais um chapéu, dessa vez na tradicional Chapelaria
Paulista, talvez eu queira repetir meu pai, Daniel ( 1904- 1965), que usava
chapéus das marcas ( ainda não se dizia griffe) Cury e Ramenzoni. Para
falar a verdade, não dispenso nem o lenço branco no bolso frontal do
paletó, o que era moda antigamente.
Às vésperas do ano 2.000, tempos de informática ( que já se delineou
como robótica e cibernética), do raio laser, da internet, das viagens
espaciais, sou, na verdade, um homem atrelado à década de 1940, 1950,
saudoso dos bondes, dos footings nos jardins e nas avenidas, de retretas
de bandas de música nas praças arborizadas a capricho, do popular cine-
grátis, do perfume das damas-da-noite nos jardins das casas belle-époque
de Belo Horizonte, antiga Curral del Rey. Podem me chamar de nostálgico,
de velhusco. Não me avexo.
À noite, o ronceiro rumor do bonde Pernambuco deslizando sob a
vigilância dos guardas-noturnos, no então tranquilo Bairro dos
Funcionários, que virou Savassi, por causa da padaria dos três irmãos
Savassi, um deles xará meu.
Conheci minhas avós Sinhá ( materna) e Maricota ( paterna), mulheres
do século passado, mães de tantos filhos e filhas, heroínas de tantos
desassossegos. Um avô (o materno) não conheci: morreu em 1928; o
outro, recatado, foi apenas uma sombra me olhando do alto da escada de
seu sobrado marianense: morreria em 1947.
Sou um tipo antigo, com meu chapéu e minha bengala de madeira.
Meus mortos me circundam o tempo todo, seus rostos vão se
esmaecendo com o esgarçar do tempo.
E agora , com essa conversa retrô, me tomou uma vontade de ir beber
cerveja no antigo Bar do Izidoro , na Praça da Igreja da Boa Viagem, bar
que conheço desde eu rapazote. Será uma volta ao passado, uma breve
viagem no tempo. O dono, por certo já enrugado, cabelos bem brancos e
um pano, uma toalha , no braço, ainda se lembrará de mim, nas
primeiras calças compridas, o menino-moço da Rua dos Inconfidentes,
1041, casa de minha rígida avó Sinhá e meu liberal tio Aldo Hildo Motta,
vulgo Laspinho? Ainda estará lá, comandando seu velho barco boêmio?
Depois de tantos anos? Eu frequentemente ia lá buscar cervejas para tio
Laspinho, freguês de caderno. Levava uma sacola com cascos vazios.
Adentro o antigo Bar do Izidoro. Sou um senhor de meia-idade, de
chapéu marrom Ramenzoni. Pai de dois filhos, morador de Brasília,
passando três dias em Belo Horizonte. O bar não perdeu seu ar antigo.
Ainda é um reduto de boêmios. Peço uma cerveja casco-escuro. O relógio
da Boa Viagem bate o velho carrilhão: são apenas 7 da noite. Uma noite
clara, sem lua e de poucas estrelas. O viajante do tempo como que vê
chegar, devagarinho, o primeiro fantasma da noite. São fantasmas
mansos, já se foram há um bom tempo. Talvez ainda sintam alguma sede
da cerveja e uma saudade daqueles inesquecíveis torresmos de
outrora…Encosto a bengala no espaldar da cadeira ao lado. Contrariando
o manual de civilidade e boas maneiras e a tradição do bom-tom ,
mantenho na cabeça o velho chapéu Ramenzoni. É como se o antigo
menino estivesse em casa. Do ar puro que vem de fora, do sossego da
praça, chega um cheiro bom de dama-da-noite…Peço outra cerveja.
Dessa vez, o próprio Izidoro vem me servir. Olho-o com um certo espanto.
Há quanto tempo não o vejo! Está pálido, com ar de cansado. O tempo
passa para todos e sobre todos. Mas me olha paternalmente, como se me
dissesse: “Ah, o sobrinho do Laspinho !”. Há quantos anos não o vejo, meu
Deus! Pela porta da frente, entra um frio tão frio que parece não ser
deste mundo…Izidoro destampa a garrafa, com um leve sorriso. Como está
pálido ! Izidoro Soveral, me lembro do sobrenome. Agradeço. Tomo os
primeiros goles. A friagem que vem de fora parece penetrar a alma do
antigo rapazote. Sinto um arrepio de cerveja muito gelada… O velho
Izidoro, homem educado, faz uma leve reverência, em cumprimento. E,
antes que eu puxasse conversa, se vai, rumo ao balcão, ao seu posto de
comando, na grande caixa registradora de fabricação inglesa. Olho para o
balcão. Lá já não estava a velha e grande caixa registradora. O que havia
era um computador, com um homem quarentão no comando. Pouco
depois, ouvi o carrilhão da igreja anunciando as 8 da noite. Uma noite não
muito escura, sem lua e com poucas estrelas. Chamei pelo garçom. Pedi a
última cerveja, gelada de arrepiar…
BH, 1996.