O assunto pode parecer meio mórbido, mas tem sua graça. Leitor amigo, você pode não morrer de rir com esta croniqueta, mas, gentilmente , prossiga, e dê graças ao nosso bom Deus por estar vivo.
O caso é que surgiu há tempos e fazendo sucesso o volume intitulado “O livro da vida”, organizado pelo jornalista Matinas Suzuki Jr., coordenador da coleção Jornalismo Literário da editora Companhia das Letras. Trata-se de uma coletânea dos melhores obituários do jornal “The New York Times”. São 57 necrológios de pessoas anônimas, mas importantes pelo que fizeram nesta vida.
O organizador da seleta afirma que “o obituário talvez seja o único lugar da imprensa diária que chegou perto do jornalismo literário sistematicamente.” Ele sabia o que dizia.
No “NYT” escreveram alguns dos maiores obituaristas do mundo, “artistas da morte” como Alden Whitman ( o “Sr. Má Notícia”) e Robert McG. Thomas Jr ( “o pai das biografias de gente desconhecida”). No livro em tela não há textos de Alden Whitman ( personagem, por sua vez, do grande romancista Gay Talese), porque os textos dele “são quase todos sobre pessoas muito famosas” e a coletânea privilegiou figuras anônimas ou pouco conhecidas, mas ali temos 28 textos de Robert McG. Thomas Jr., celebrado mestre na arte de redigir necrológios. Convenhamos que o
obituário, na sua essência metafísica, digamos assim, é uma celebração da vida.
Cada perfil biográfico é muito bem escrito, repleto de informações interessantes e de leitura fascinante. Os obituários do “NYT” têm a reputação de ser os melhores da imprensa mundial e são a primeira coisa que incontáveis leitores procuram ao abrir o diário. Graceja o editor A. M. Rosenthal: “Se você for morrer, é melhor morrer no “Times”.”
Lembro-me da frase de um humorista cujo nome não me acorre agora: “Toda manhã abro o jornal e leio o obituário. Se meu nome não está lá, respiro aliviado e ponho-me, feliz, a trabalhar.” Essa é boa, não?
Um dos personagens do livro é Angelo Zuccoti, que, de smocking, controlava a entrada dos clientes do El Morocco, um dos mais famosos e elegantes restaurantes novaiorquinos: as celebridades, como Jacqueline Kennedy Onassis, ele as colocava nas mesas da frente; os pobres coitados, apesar de ricos, magnatas alguns, ele os conduzia, gentilmente, cheio de mesuras, às mesas do fundo, no canto jocosamente chamado Sibéria…
Vale a pena ler o delicioso livro fúnebre, digamos assim, traduzido por Denise Bottmann.
Para encerrar, ocorre-me registrar que o mais famoso obituarista brasileiro de gente famosa foi o jornalista e escritor carioca Antonio Carlos Villaça ( 1928- 1905 ), meu saudoso amigo e autor de vários livros, dentre eles o memorialístico “O nariz do morto”. Villaça redigia perfis biográficos de pessoas famosas, prestes a embarcar para o outro mundo –ou outra dimensão.
No “Jornal do Brasil”, a tétrica, soturna e conhecida “gaveta do Villaça” guardava modelares necrológios enaltecendo os méritos e virtudes dos próximos finados ilustres. Só faltavam os arremates finais, depois do último suspiro do graúdo. A “gaveta do Villaça”, homem muito gordo que só se vestia de terno preto, devia causar arrepios… Não sei quem escreveu o dele, grande e famoso escritor, que não conseguiu realizar seu grande sonho : entrar para a Academia Brasileira de Letras, onde até contava com bons amigos.
Meu querido amigo e grande cronista e ensaísta Edmílson Caminha publicou um livro com numerosas cartas trocadas entre ele e Antonio Carlos Villaça, que se conheceram em Fortaleza. O notável livro intitula-se “O monge do Hotel Bela Vista” ( Brasília, Thesaurus, 2008). Villaça foi noviço do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e, sempre solteiro, morou por 17 anos no apartamento 304 daquele pequeno hotel do bucólico bairro de Santa Teresa, onde uma vez o visitei, tomando o famoso bonde na ida e na volta.
Vejamos um trecho do mencionado livro do mestre Caminha, à pág. 14:
“Antonio Carlos Villaça foi a maior e mais autêntica vocação literária que até hoje conheci. Era só escritor, essencialmente escritor. Imensamente gordo, barba e cabelos à escovinha brancos, sempre vestido de preto, compunha um tipo eclesiástico, uma espécime abacial, a representação do monge que não chegou a ser, pois não passou do noviciado no Mosteiro de São Bento.”
Por derradeiro ( sem funéreo trocadilho), deixo-lhes, dentro do “espírito da coisa”, esta saborosa frase de W.C. Fields, que li alhures:
“Este mundo está- se tornando tão perigoso que um sujeito pode se dar por feliz se sair dele vivo.” Lendo isso, o saudoso Villlaça daria uma daquelas suas boas e ruidosas gargalhadas, de quem tanto amava a vida e a literatura, não é mesmo, Caminha ?
Longa e feliz vida para vosmecês!