Em 11-12-2019, a Unesco ( órgão cultural da ONU ) reconheceu como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade o Bumba Meu Boi  do Maranhão , tradicional celebração daquele estado que une o Nordeste ao Norte do Brasil.

O anúncio foi feito em Bogotá durante a reunião da Unesco, que é a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O Brasil ficou feliz com a boa notícia. De minha parte, sou fã antigo do Bumba Meu Boi. Meu Boi Bumbá. Mineiro gosta de boi e boiada: Grande Sertão, veredas, sagaranas.

Considerado  um Complexo Cultural por congregar performances dramáticas, musicais e coreográficas e manifestações como artesanatos, bordados do couro de boi  e indumentárias dos personagens, instrumentos musicais, etc., o maravilhoso Bumba Meu Boi já havia sido reconhecido  como Patrimônio Cultural do Brasil, em 2011, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- IPHAN, fundado  pelo grande brasileiro Rodrigo Melo  Franco de Andrade, com a ajuda do ministro Gustavo Capanema.

O Bumba Meu Boi agrega, em seus festejos de grande apelo popular, a devoção aos santos juninos João, Pedro e até Marçal, pouco conhecido. Mas se vincula também a cultos  religiosos afrobrasileiros do estado do  Maranhão, como o Tambor de Mina ( e me lembro da cidade de Codó, que conheci no tempo do governo do presidente José Sarney, escritor e acadêmico) e o Terecó.

Conforme a tradição , o  que acontece é um sincretismo entre os santos da hagiologia católica e os orixás, voduns e encantados que reclamam e exigem um boi como obrigação espiritual, fenômenos que vêm dos arcanos.

Aqui em Brasília tivemos o famoso e saudoso Seu Teodósio, entusiasta divulgador do Bumba Meu Boi. Figura inesquecível do nosso melhor folclore, a quem rendo minhas homenagens.

Há uma lenda século  XVIII que nos traz  a figura de Catirina que, grávida, sentiu desejo de comer a língua do boi  mais valorizado da fazenda maranhense onde trabalhava. Para agradar à “patroa”, um tal Pai Chico matou o boi de estimação, o que causou a raiva de seu patrão. Armou-se um banzé.   Com o adjutório de seres mitológicos, o boi ressuscitou , para a felicidade geral. A partir da lenda, veio a  cativante narrativa.

Não é a primeira vez que um bem brasileiro integra a lista da Unesco. O Complexo Cultural do Bumba Meu Boi é o 6º  bem brasileiro a compor a lista internacional. Já foram contemplados os seguintes:

– A Arte Kusiwa-Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi ( 2003)

– O Samba de Roda no Recôncavo Baiano ( 2005)

– O Frevo: expressão  artística do Recife ( 2012)

– O Círio de Nossa Senhora  de Nazaré , em Belém do Pará ( 2013)

– A Roda de Capoeira (2014)

Voltemos ao Samba de Roda no Recôncavo Baiano. O samba, marca do Rio de Janeiro, de Donga e Cartola, de Noel  e Pixinguinha, de Tom e Vinicius,  é tido como a expressão máxima da música popular brasileira, no mundo inteiro. Mas, no século XIX, o ritmo emblemático do nosso país era o lundu ( ou lundum), de raiz genuinamente africana. O tema foi abordado em grande estilo pelo  escritor paraense José  Veríssimo  ( um dos melhores amigos de Machado de Assis), em seu livro “Cenas da vida amazônica”, que tanto estimo e ao qual sempre volto. A edição princeps surgiu em Lisboa, em 1886, de tal forma mal produzida que o autor a execrava.

Dessa notável obra tenho duas edições: uma, da Martins Fontes, SP, 2011, organizada por Antônio Dimas, autor de excelente e longo ensaio introdutório ; outra, da Universidade do Estado do Pará, 2013, com prefácio de José Guilherme Castro e valioso ensaio crítico de Maria do Perpétuo Socorro Gomes Avelino França. São duas preciosas edições  de um livro clássico , cujo  autor  foi elogiado por Machado de Assis e outros notáveis. José Veríssimo é o autor de uma “História da Literatura Brasileira” e outras obras.

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O samba não era ainda a música, o ritmo brasileiro consagrado. Ainda estávamos longe da “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso. O trono era do lundu – ou lundum- que os escravos africanos trouxeram d’além mar, com toques de luxúria. Destaco o  conto “O lundum”, de José Veríssimo. À pág. 246 da edição da Martins Fontes o autor se esparrama:

“A viola e a flauta puseram-se de acordo  e tocaram o lundum. Nápoles tem a tarantela; o Aragão tem a jota;  a França tem o cancã; a Espanha tem  o bolero; Portugal tem o fado;  Montevidéu tem o fandango; o Brasil tem o lundum. O lundum, creio, nos veio pela Bahia. Tem o seu tanto de africano.  Depois espalhou-se no Brasil. O cateretê, o chula e outras danças são suas filhas. O lundum é uma dança que admite todas as outras.”

Em 1881, numa viagem a Minas Gerais, com a Imperatriz  D. Teresa Cristina, o Imperador D. Pedro II  foi ao povoado de  Lagoa Santa, perto da futura Belo Horizonte. O erudito monarca fora  visitar o sítio onde morara por muitos anos o cientista paleontólogo  dinamarquês Peter Lund, um esquisitão que amava grutas e Pré-História. Ele morrera um ano antes.

No seu Diário, D.Pedro  II escreve sobre o episódio e registra que a mulher  de Nereu ( o filho adotivo de Lund)  “cantou agradavelmente” o lundu   afromineiro.

No livro “Crônicas Mineiras” ( SP, Ática, 1984) , na minha crônica  “O tesouro de Peter Lund”, escrevi, à pág. 27:

“Sim, é verdade. Nereu dedilhou  logo o violão, tocando com gosto para o Grande Ioiô que mandava no Brasil. A irmã, de “voz  agradável e bem afinada” ( escreve o Imperador ) solfejou lá  seu  repertório mais caprichado. E a mulher de Nereu “cantou agradavelmente”   o lundu mineiro  Quero me casar, quero me casar, certamente com aqueles sensuais meneios de quadris e as umbigadas de praxe, perenizados nas gravuras  de Rugendas. Não é invenção, não –está no  Diário de Viagem de D. Pedro II a Minas, publicado no Anuário do Museu Imperial de Petrópolis. (…) Depois ainda dizem que Minas só tem  queijo, banco e político manhoso!”

Segundo o dicionário enciclopédico Koogan/ Houaiss, o lundu ( ou lundum) é “uma dança rural de origem africana, acompanhada de cantos”; “canção, música, em geral de caráter cômico ou picaresco.”

Então, nessa sarabanda de ritmos ficamos assim: o samba suplantou o lundu como marca da música popular brasileira e ainda deu uma cria chamada bossa-nova, com variações que chegam ao harmonioso e refinado  compositor e cantor Guilherme  Arantes. O Bumba Meu Boi do Maranhão ganhou foros de fama  internacional. Falta agora a Unesco voltar sua atenção ( como observou  o jornalista  Vicente  Limongi Netto ) para o Bumba Meu Boi de Parintins, Amazonas, um grandioso  espetáculo que atrai turistas do mundo inteiro.

Sobre os tradicionais festejos de Parintins, o prosador, poeta, professor universitário, homem de rádio e TV Paulo José Cunha publicou dois livros: “Caprichoso –a Terra é azul”, de 1991, e “Vermelho – um pessoal garantido”, de 1998. ( Cf. “Dicionário de Escritores de Brasília”, de Napoleão Valadares, André Quicé Editor, 2012, 3ª ed.).

Por Danilo Gomes, membro da Academia Mineira de Letras, ocupante da cadeira n° 01.