O entrecruzamento de planos rememorativos de emoções passadas, dando a impressão de simultaneidade de imagens e conceitos, condiciona a técnica compositiva de Rogério Zola Santiago. A polivalência do texto é notada em versos condensados, plenos de essência poética. E de desafio hermenêutico.

 

Sobras na mesa. Para não sufocar, mastigou-se.

Desfizeram-se dela e da cadela bem-intencionadas.

Vida “É”, – sem pontuação.

{chaves colchetes parêneses abrem sem fechar

(três pontos e não cinco, para senão, vocativa razão?

 

Há, em Rogério Zola Santiago, nítida diferenciação entre as formas dos poemas. Alguns se concentram em um ponto único de estruturação temática, como se pretendessem ser mera ampliação do sintagma nuclear, minimal (citemos Parênteses). Outros acumulam informações líricas, atravessam idades e circunstâncias diversas (exemplo: Safena, Anjos e Comunicação). Terceiros são de interpretação conjectural, pois se fecham em um estojo enigmático (vejam-se Cronômetro e Oceania). A maioria comporta, porém, leitura plural, pois permite tanto um deletreamento, por assim dizer, linear, quanto uma leitura incorporada de valores pré-textuais que entendem com a memória familiar, erótica, vivencial e política do autor. Daí termos igualmente uma navegação no mundo das viagens no espaço geográfico e outras, idealizadas, por intermédio de leituras passadas.

 

Toureador, visto-me de

rosa atirada ao martírio que não quer e mata,

pois teus olhos, Mohammed,

são de um verde fundo lançado por arpão

francês ao coração da Argélia.

 

Decifrar a mediação referencial, convertida em mediações temáticas que se ligam a nomes de lugares, autores, artistas e pessoas das relações afetivas do autor será uma outra abordagem analítica de bom rendimento. Entre as muitas polaridades que os Exercícios de Partida alimentam, talvez a que opõe o mundo oferecido ao homem seja a mais frequente, mesmo que o cosmo circundante seja travestido de paisagem, em que a figuração geométrica se contrapõe ao submisso/liberto ser humano, na sua condição de “reificado/sem clausura”, como ocorre no poema Palm Springs.

 

A visitação de temas arquétipos, como a lágrima, vai encontrar na poesia de Santiago formulações inesperadas e originais. É o caso de Redenção, calmosa análise da emoção lacrimejante. O fecho do poema “A calma estava ali” vem como um clarão que ilumina retrospectivamente toda a composição, trazendo à luz a função catártica, purificadora. Já no poema Frutais, de O mercador de Signos, a lágrima é encaixada em uma formulação imagética. Por outro lado, o comentário final inunda o conjunto de subjetividade inquietante, quase irônica.

 

 

Frutais

 

A lágrima é composto cítrico

na passagem da quimera,

adquire beleza como as frutas

logo antes de serem comidas.

 

(Há outro complemento dela

que para cada ser varia

açúcar dietético ou romaria

doce mascavo detento).

 

Não é somente a antinomia entre o mundo e o homem que inspira o poeta. Também há forte margem ideológica de descontentamento, de análise social, como em Massa, da primeira parte de Exercícios de Partida. Em várias ocasiões, sente-se o convite à observação aguda da crise de valores na contemporaneidade. No poema Romaria, expõe-se como que o rito da massificação consumista. De modo análogo, DNA nos traz uma espécie de antropologia filosófica em forma de versos.

 

Errado e certo,

simultâneos perto e longe, passado

joio pródigo. Mordiscam-se

consequências, augúrio dentro da casca.

 

Para não dizer da metalinguagem, onipresente. Tomemos o poema significativamente denominado Interpretação, cuja Parte I é verdadeira apologia da releitura como atividade criadora. Na Parte II, as imagens da metamorfose (Camaleão, por exemplo) combinam-se com outras que, deslizando do sentido metalinguístico, caem no mundo referencial da escravidão do homem, não sem antes refugiar-se no pronunciamento da crítica social: “Há de ser travada a luta/nas ruas onde velejam estigmas”. Na sequência de uma operação anagramática com o termo “estigma”, surge-nos a palavra “enigma”, de certo parentesco no contorno grafo-acústico. “Enigma”, ausente, evocada, pode constituir-se em palavra-tema do poema, exposta à decifração. No exercício de decomposição anagramática, “Phoenix” pode desdobrar-se em “perplexa” e esta em “amplexo”. Tal jogo é antigo em Rogério Santiago. No poema Prazer, do livro Fragatas e Silêncios (B. Horizonte, 1991, Imprensa Oficial, onde atuou como linotipista o poeta e professor João Baptista Santiago, nos anos 1920, chegando a Diretor), nota-se a astúcia letrista, acrescida de rimas internas que conjugam “esperas”, “esferas”, “feras”, “quimeras” e “pedras”. Adiante, no poema Mimetismo, ainda na Parte I do livro, o “camaleão” incorpora, além do sentido de metamorfose, o de realização mimética, de largo emprego na tradição estética do Ocidente, pela via de Platão e, principalmente, Aristóteles. O parentesco melódico-gráfico-significante transparece em Corrimão, conjugando-se na esfera da mensagem de caráter crítico ou, simplesmente, na objetivação de determinada oposição ou revolta.

 

Palpável, questiona a moeda

cunhada sem fervor, mas dedilha o tom maior

que pode vir a ser preâmbulo:

mandalas sussurram pontos de cruz.

 

De volta à metalinguagem, pincemos o poema Tradução, uma das mais refinadas elaborações da obra, pois evoca o estado inicial da era metafórica (“de volta… à intuição inocente”) e o efeito realizado que foge à razão e à objetividade: “criação justaposta/ao indefinido”. É importante considerar a capacidade lúdica do poeta, seus jogos verbais bem logrados. O poema Mallarmé diz tudo, por meio de seus brinquedos fônicos e morfológicos.

 

Dentro da cosmovisão de Rogério Santiago, conforme assinalamos, um dos traços marcantes é o vivente contraposto ao universo. Em termos do cotidiano, a descrição da paisagem é geralmente acompanhada por uma antropomorfização ou por um zoomorfismo. A interferência do humano dá a dimensão dramática do poema. Em Cenas, por exemplo, o lado descritivo de Lagoa Santa é subitamente iluminado pela carga emocional contida no derradeiro verso: “Não fosse aquele ganido” (texto traduzido ao inglês por Lloyd Schwartz, ganhador do Pulitzer de Crítica). E, em Relação, em que o zoomorfismo redunda em antropogênese, com um sentido pessimista quanto ao ser.

 

O campo da paisagem territorial completa-se com as viagens e, claro, a experiência cultural, pois presentifica a apreensão psicossocial. Veja-se Quíchua, da III Parte, exemplo precioso de redução verbal e de construção poemática. Na mesma linha, se tomarmos Carrilhão, do conjunto Ôniro Mou (Sonho Meu, em grego contemporâneo), a unidade afetiva do poema completa-se com a introdução final do lexema “saudades”, conceito básico da construção discursiva. Dá-se, então, uma espécie de cotidiano valorizado ou de rememoração intensificada pelo sentimento de regressão.

 

Quimera

 

…sol ocultado. Oceano em que a piscina se tornara

avança denso insólito revolto,

pleonástico almejo de devoramento.

 

*

Leite Queimado

 

…mãozinha lépida,

álcool na perna do crescimento rápido

desvelo sem revelar temor algum –

olhar ameno ausentado no ruflar

da despedida – ah!, leva-me consigo

mãe serena, hoje, apenas nuvem de caneca.

 

Se a cosmovisão do poeta em Exercícios de Partida apóia-se no choque da sensibilidade humana com as regras do mundo, o microcosmo emocional repousa na cena familiar. Isso já era perceptível nas obras anteriores, Draga (Belo Horizonte, 1989) e Fragatas & Silêncios (1991). O poema Filhos é característico, pois adiciona o peso ético à verdade estética. O tema sugere o patético da infância perdida em um ambiente super-determinado. Daí, o poema Figlio e, mais genericamente, o Criança Designada, verdadeira projeção contextual do tema. Dada essa tendência em Rogério Santiago, vê-se, às vezes, a irrupção aparentemente incontida de sinais da infância, como em Carocha. Ou da adolescência, em Rainha das Neves.

 

 

 

Para bem avaliar Exercícios de Partida há de se incorporar à análise a perquirição metafísica, que se exprime frequentemente nas composições. Por exemplo, no poema Vinho o fator “tempo” se associa a “rito”, “adeus”, “morte”, mas é praticamente redimensionado ante a experiência do “vinho”, que puxa dúvida e “tempo”. Este, sim, estratégico na qualificação do “vinho”, torna-se resíduo lírico da conotação metafórica e principal agenciador da beleza do poema: “esse ávido desconhecido de cada taça”. Contudo, o campo de análise da coletânea de Rogério Zola Santiago não se esgota na categorização metafísica. Amplo espaço fica exposto ao estudo da mente, de que o poema Psique é simbólico. Bela e desafiadora realização. Para quem gosta da exploração das causas secretas do poema, Rogério Zola Santiago oferece amplo espaço para a inevitável analogia do discurso verbal com a atividade onírica. Ou, mesmo, a exteriorização de códigos míticos ou simbólicos previamente interiorizados, transformados em expressão vital.

 

O que também valoriza o conjunto dos Exercícios de Partida é a consciência artesanal do poeta e a busca insistente das raízes da poesia, de sua cultura, de si mesmo. Quando, com certa ironia, coloca Pedro Nava no centro da temática, o que ressalta é a poética da intemporalidade (poema Atemporalidade). Certo aspecto de ceticismo calça o sentido de muitos versos, como o “abraço/no nada do outro”, que culmina o poema Ato. Mas, o que conta, em Rogério Santiago, é o verso como a medida de todas as coisas. É sábia a intromissão do descompromisso no poema Pulso: “não conto sílabas”. Trata-se de uma obra plural, entrecortada por mananciais imagéticos diversos, em que a descrição da paisagem observada sugere uma atitude mental. Metá realiza o metapoema, refere-se ao “perpétuo moto” que abrange a arte e a vida, cuja metáfora, afinal, é o boi, que “sabe o vegetal/para renascer”.

 

O poema é uma calle de perpétuo moto.

Silábico, embute-nos cordatos sibilantes,

salmoura retirada fécula.

 

 

Em Exercícios de Partida, o sentido por vezes pode refugiar-se em sombras agitadas, frinchas do subsolo da alma, quando a chave do enigma se recolhe a uma carapaça. São poemas que se aparentam a bloqueios, exigindo leitura atenta, a fim de que aflorem as partes não manifestas. São composições governadas pela melodia verbal, pelos efeitos míticos ou por procedimentos suprarracionais. Sempre um desafio à inteligência, à sensibilidade, como querem as obras de significado plural, as quais, não raro, cegam ou ofuscam. Exercícios de Partida traz ao leitor a rara oportunidade de convivência com o fenômeno da experiência poética na sua mais tensa complexidade, com seu universo de poemas abertos à pluralidade semântica: os signos organizam-se no pleno vigor de sua polissemia.

 

Velejar perdão aos velhos Santiago, pois que de dar a vida por amigos eram capazes, incapazes de prometer e não fazer, – gente de ferro, esses afastados. Restos pesados de carregar, relegada penúria honrada na eficácia do cruzamento de macho caçador com mulher amordaçada.

 

 

Sente-se, nos diferentes segmentos em que se subdivide a obra, um perfeito corte e um conveniente miscigenar entre o poético e o prosaico. A costumeira retórica, anterior à modernidade, escudara-se em aparatos exteriores, suportes convencionais que legitimavam a presunção de poeticidade: formas fixas, versos medidos, rimas obrigatórias, distribuição regular dos acentos, enfim, uma série de expedientes externos nem sempre condizentes com a expressão. A modernidade, tendo-se apoiado no versolibrismo, tornou mais difícil categorizar a poesia, embora a muitos apareça como libertadora dos estados líricos, livres de amarras.

 

 

Remanescem dicotomias do “não mais”:

toma do metálico para ouvir o retinir da

radiola plástica. Agora, me pega o braço,

coloca agulha na textura deste corpo

(carne ou livro),

e toca.

 

Com efeito, a crítica avisada é capaz de compreender os protótipos da poesia nas composições modernas, na medida em que se sente, nos textos sob escrutínio, a condensação de sentidos, a multivocidade do discurso poético, que, às vezes, por opção, nada tem a relatar ou transmitir, mas simplesmente contentar-se em ser. Na famosa declaração de Archibald MacLeish, no poema Ars Poetica, A poem should not mean/But be.(“Um poema não tem de significar, mas ser.”). Indo mais longe, invoquemos Paul Valéry, poeta escrupuloso e pensador exigente, para quem a poesia surge como “literatura conduzida ao essencial de seu princípio ativo”.

 

A passagem da poesia tradicional para a contemporânea assinala a tendência de absorção da retórica pela poética. E Rogério Zola Santiago, nos seus Exercícios de Partida, ministra ensinamentos preciosos sobre como realizar a poesia sem concessões ao discurso sentimental ou transparentemente explícito. Tendência, aliás, que já vinha das suas obras anteriores.

 

Pele sai da cobra, …casca do homem

que se descasca. Pele sai e o homem se

retrai osso e carne. Homem sem pele

repete a cobra. Olho aberto outro fechado

comedido poema e prosa: nada é semente.

 

A interposição de planos, nos Exercícios do artista, articula uma zona do mistério que é definidora do poeta e, ao mesmo tempo, um desafio para o leitor. Convida à co-participação no deslindamento do texto, atraindo-o e aconselhando-o a não desistir da comunhão com o significado profundo. O jogo de sedução advém da massa sonora dos poemas, das imagens fulgentes ou do mero entrelaçamento de símbolos e circunstâncias que convidam à participação, apelo que acorda e estimula o ato de decifrar.

 

Rogério Zola Santiago acode à nova tendência de purificação da matéria poemática dos seus suportes mnemotécnicos (no passado) ou tipográficos (nos contemporâneos subjugados pela publicidade). A predominância da função poética, apoiada no poder criador das palavras, retira-o também da tribo que tenta passar emoções vulgares, resvalando-se ao lugar-comum.

 

Regurgito

 

Não falo da Vida: é da relação

Que tem o subtexto com a desdita.

Nem digo de empobrecidos preceitos.

É da noite aluarada que mato adentro

— e registro.

 

Santiago repõe o debate estético sobre a poesia considerada como finalidade sem fim, não obstante percorrer, no seu discurso, os princípios da evocação, da intensidade e da totalidade. Muitas vezes, os seus poemas cumprem dupla missão: a de desveladores da essência e a de reflexo da existência. É claro que Rogério Zola Santiago, exprimindo-se numa faixa em que se presentificam a emoção e o enigma, não deixa de buscar, como bom articulador da linguagem poética, a correlação pretendida entre o plano da extensão e o plano do conteúdo. Ou, em outro dizer, o poeta procura sempre levar às últimas consequências a fusão de som e sentido. Daí ocorrerem, em seus poemas, projeções de natureza isomorfa ou isométrica. E, sintomaticamente, procedimentos que ora apontam para a ordem, ora sublinham o caos.

 

Homem tem face, cara tem

bicho – poeta é transgressão do

meu Real da Palavra (DRAGA, 1989),

pá lavra, pá e lavra em terreno

baldio onde florescem caligrafias transparentes.

 

Tal é o sentido de Exercícios de Partida, com que este poeta se firma entre os mais hábeis cultores da palavra poética em língua portuguesa, garantindo uma tradição do sangue (seu avô, Baptista Santiago) e do solo (Minas Gerais).

 

*Fábio Lucas é escritor, jornalista, economista e advogado, Mestre e Doutor nestas áreas; crítico literário, membro das Academias Mineira e Paulista de Letras; Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores, editor do jornal desta entidade. Jurado de concursos literários em países de língua portuguesa, lecionou Literatura Brasileira e Portuguesa em Blomington, Indiana, USA. Com vasta obra, dentre suas publicações estão “Mineiranças”, “O Poliedro da Crítica” e “Literaturas Amazônicas”. Em romance, destaca-se com “A mais bela História do Mundo”.