Na pátria intercontinental do poeta Fernando Pessoa, o território brasileiro compreende uma extensão raras vezes ocupada por algum idioma, na hegemonia de sua prática no planeta. A língua portuguesa foi um dos fatores da consolidação do país-continente e da nacionalidade.
No início da colonização lusitana, a necessidade de comunicação, seja dos reinóis que se estabeleciam no mundo novo, seja dos sacerdotes catequistas, e a curiosidade pelos falares locais levaram ao estudo e à adoção da língua geral tupi. O padre Manuel da Nóbrega a dominava e o padre José de Anchieta escreveu sua gramática, além de ter composto poemas e peças teatrais visando a conversão dos indígenas. Em São Paulo, a metrópole nascida do colégio fundado pelos jesuítas em 20 de janeiro de 1554 no planalto de Piratininga, floresceu o nhangatu, variante do tupi criada pelos paulistas. Mas o português acabou por prevalecer, gradualmente apagando os resquícios da fala bandeirista.
Darcy Ribeiro lembra que os africanos impuseram o domínio da língua portuguesa, de vez que eram tantos os dialetos das diferentes nações transplantadas, no ciclo do ouro, que somente o idioma de cultura da nascente civilização brasileira poderia atender a todos e viabilizar a comunicação. Um dicionário da língua mina-jeje foi escrito em Ouro Preto, na primeira metade do século XVIII, a fim de que os senhores de mina pudessem entender o que diziam seus escravos, tendo sido estudado e publicado na Coleção Mineiriana pela etnolinguista baiana Yeda Pessoa de Castro. Batizados com nomes cristãos e integrados ao cotidiano da sociedade mineradora, na qual alguns alcançaram posições de relevo, como Chica da Silva, senhora de posses em Diamantina, os africanos e seus descendentes contribuíram para o descarte do nhangatu e a prevalência da língua do reino. O ouro levou o idioma aos mais profundos sertões brasileiros.
Como o catolicismo, holístico por natureza, e o barroco, na fusão e profusão de formas, a língua de Camões absorveu e integrou as palavras e expressões com que os indígenas e os africanos enriqueceram-na de norte a sul do Brasil. Gregório de Matos satirizou o “Adão de massapé” e Cláudio Manuel da Costa cantou a saga do gigante Itamonte nas terras do “indômito Pataxó”. Aos indigenismos e africanismos que cintilam no vernáculo, na cata dos frutos silvestres e ao som dos vissungos (cantos de trabalho ou de funeral), entre a pitanga e o axé, somaram-se, mais tarde, galicismos e anglicismos, até a chegada dos americanismos da globalização e das simplificações dos códigos digitais. No entanto, a língua falada e escrita é a portuguesa, apesar de diferenças sensivelmente notadas entre a versão brasileira e o original em curso na extremidade da península ibérica. Mário Andrade pensou que era melhor escrever “milhor”, mas não funcionou. Outras foram as imensas contribuições que o criador de “Macunaíma” deu à língua e à cultura brasileiras.
Regionalismos verbais e sotaques particularizam a língua pelo país afora. O “x” do carioca remonta ao norte de Portugal e à língua galega, na qual José se escreve “Xosé”. Observam-se medievalismos armoriais em arcaísmos de falas do nordeste, assim como, no sul, italianos, alemães e polacos introduziram vocábulos próprios, sendo ainda preservado o talian, uma antiga língua do Vêneto que sobrevive surpreendentemente em regiões gaúchas e já desapareceu no norte da Itália.
À revelia dos acordos ortográficos e dos cânones acadêmicos, de fato, “fato” em Portugal é terno, fatiota de alfaiataria, pelo que a letra “c” estará sempre na palavra “facto”, acontecimento incontornável na ponta da língua dos portugueses. Nada impede que o idioma de cultura seja o nosso maior patrimônio, venha esta palavra com acento circunflexo ou agudo, este preferido pelo português e pelo paulista, posto que a língua é uma só, sendo muitas.
Após a independência das colônias portuguesas na África, no final do século passado, cresceu o intercâmbio cultural dos novos países com o Brasil, e é certo que autores como o nosso João Guimarães Rosa influenciaram escritores angolanos e moçambicanos na valorização de seus ricos regionalismos. Aqui, procura-se enfatizar a matriz africana, em especial na poesia, como evidenciam o legado de Adão Ventura (Santo Antônio do Itambé) e a obra de Ricardo Aleixo (Belo Horizonte), de Anelito de Oliveira (Montes Claros) e de Edimilson de Almeida Pereira, poeta e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Minas Gerais foi o berço das primeiras manifestações genuinamente brasileiras de arte. Verificou-se, na áurea capitania, não mais a importação da metrópole europeia, mas a expressão de uma cultura que se forjou por entre as grandes montanhas do ouro e dos diamantes. Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, filho de uma africana e de um europeu, é a referência maior da primeira arte do Brasil. Autores como Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Manuel da Silva Alvarenga, Basílio da Gama, Frei Santa Rita Durão, cônego Luís Vieira da Silva e José Eloy Otoni assinalaram o surgimento da poesia nacional, no século XVIII. Vieram com o tempo grandes nomes como Alphonsus, Drummond, Emílio Moura, Murilo Mendes, Pedro Nava, Ciro dos Anjos, Guimarães Rosa, mestres da língua e da linguagem.
No Triângulo Mineiro, encontram-se contribuições originais que rebrilham na opulência da literatura de Minas Gerais. Vale registrar a palavra crua de Carolina Maria de Jesus, a menina do quarto de despejo que estudou em Sacramento; a narrativa insólita do fantástico Campos de Carvalho; a prosa a galope nos chapadões de Mário Palmério; a literatura cachoeira de José Humberto Henriques (para Humberto Mauro, como ensina escritor cinéfilo Guido Bilharinho, cinema é cachoeira, imagem perfeita para o ficcionista uberabense); a poesia da memória de Jorge Nabut e os livros de José Otávio Lemos para o público infantil. Luiz Vilela voltou à sua Ituiutaba natal. Ele marcou a geração da Revista Estória e do Suplemento Literário, a minha geração, que nele logo percebeu um grande renovador da nossa literatura de ficção, com os contos impactantes reunidos em “Tremor de terra”.
Em Uberaba (i-beraba, água que brilha, em tupi), cidade em que se edita a revista “Convergência”, e Araxá (onde mais alto se vê o sol), sede de um importante festival literário, celebramos a língua portuguesa, na vitalidade de produção literária dos oito países nos quais é o idioma oficial. O embaixador José Aparecido de Oliveira, que foi o primeiro titular da nossa Secretaria de Estado e do Ministério da Cultura do Brasil, exerceu papel decisivo na constituição dessa comunidade internacional. Mineiro de Conceição do Mato Dentro, é lembrado no momento em que o FliAraxá traz a Minas Gerais notáveis representantes da comunidade dos países que falam o português. E é com o vigor da nossa produção contemporânea que saudamos esse encontro e nos confraternizamos com todos os participantes.
Angelo Oswaldo de Araújo Santos é jornalista, escritor, membro da Academia Mineira de Letras e Secretário de Estado de Cultura de Minas Gerais. O texto foi publicado originalmente na revista Convergência, de Uberaba (MG).