Atualmente, um grupo de três professores e oito estagiários da Ufop trabalha para digitalizar todo o acervo cedido pelo escritor

* Reportagem de Raphael Vidigal publicada no jornal O Tempo em 27 de dezembro de 2017.

As vozes de Luís Carlos Prestes, Fidel Castro, Yasser Arafat, Carlos Lacerda, Eric Hobsbawn. As letras de Gabriel García Márquez, Augusto Boal, Otto Lara Resende, Dom Paulo Arns. Imagens raras de Paulo Coelho, Raul Seixas, Assis Chateaubriand, Olga Benário. Todo esse material em forma de fitas, vídeos, fotos, cartas e outros suportes pertence ao jornalista Fernando Morais, 71, que desde janeiro acena com a vontade de doá-lo para sua cidade natal, Mariana. “A ideia surgiu porque tenho uma biblioteca numerosa, em torno de 5.000 exemplares, a maioria de não ficção. Eu pretendia doar para algum lugar, mas, quando fui mexer, descobri que, além de livros, sou um guardador de coisas”, conta.

Quase um ano depois, o projeto Casa de Mariana, inicialmente previsto para ser instalado na residência onde o escritor nasceu, começa a sair do papel. Uma parceria ampla entre Governo do Estado de Minas Gerais, Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Academia Marianense de Letras e Instituto Fernando Morais vai propiciar a construção do espaço numa rua histórica de Mariana, onde viveu o major Diogo de Vasconcelos no século XVIII. As obras estão previstas para o começo do próximo ano.

“Quando coloquei uma postagem singela nas redes sociais falando desse meu plano, uma alma caridosa me procurou querendo doar uma quantia de dinheiro para ajudar. Alguém que eu nem conhecia e pediu para se manter anônimo”, revela. “Só que aí a negociação com o atual dono da casa onde nasci emperrou, porque ele pediu um valor fora da realidade. Tenho a impressão de que ele achou que a gente tinha muita grana. Reportei isso ao doador, e ele disse que o dinheiro era para ser investido nesse projeto, fosse onde fosse”, completa Morais.

Centro cultural. Atualmente, um grupo de três professores e oito estagiários da Ufop trabalha para digitalizar todo o acervo cedido pelo escritor. “Estando na nuvem, como dizem, um pesquisador do Cazaquistão que quiser escrever um ensaio sobre Getúlio Vargas vai encontrar muito do que precisa sem sair da terra dele”, avalia Morais.

A intenção é criar, para além de um museu, um centro cultural, onde oficinas, palestras e seminários farão parte do calendário. “O primordial é ir mudando a vocação da cidade. Mariana não pode ter sua receita refém apenas da mineração, o que sempre traz riscos à natureza. Aliás, essa observação, para os moradores dali, é falar de corda em casa de enforcado”, declara, em referência ao trágico rompimento de uma barragem que completou dois anos no mês de novembro.

“Tiradentes conseguiu se tornar um ponto anual para cinema e gastronomia. Vem cozinheiro do mundo inteiro fritar um ovo aqui”, brinca. “Se a Casa de Mariana contribuir nesse sentido, para mim já está pago”, garante Morais.

Para isso, ele promete se valer de amizades forjadas durante 50 anos de atividade profissional. “Posso pedir ao Mario Prata para dar quatro dias de oficinas sobre dramaturgia, novela. Chamar o Oliver Stone, que é o único que tem três Oscars, dois como diretor e um como roteirista, para ele ministrar aulas de roteiro, olha que luxo, e tudo de graça para quem vai assistir”, sustenta.

Com obras traduzidas em inúmeros idiomas, a escolha por Mariana passou longe do acaso. “Não sou um marianense só oficial. Sempre que tenho um tempo escapo para lá. Todos os meus livros, no ‘quem é o autor’, falam que nasci em 1946 e sou de Mariana, estejam eles traduzidos em russo, chinês, polonês ou japonês”, informa.


Política.
 Além de correspondências e diversas anotações para entrevistas, biografias, reportagens e provas documentais de sua atuação política (foi deputado e secretário de Cultura e Educação), o entrevistado se deparou com curiosidades que decidiu chamar de “fetiches e cacarecos”. “Tenho a placa original do carro dos pistoleiros da rua Tonelero (na tentativa de assassinato a Carlos Lacerda em 1954), o relógio de ouro que Muamar Kadafi me deu, uma caixa de charutos de prata portuguesa com uma dedicatória de Fidel Castro e um taco de beisebol com um bilhete escrito por Hugo Chávez”, enumera. E para 2018 ele já tem outro projeto engatilhado. “Estou escrevendo um livro sobre o Lula, que começa no dia da prisão dele em abril de 1980 e termina quando ele entrega a faixa presidencial para a Dilma, em 2011”.