Emissoras de televisão divulgam a grave situação do Ceará, que enfrenta uma das maiores secas das décadas mais recentes. Os açudes atingem níveis baixíssimos de água e as previsões são dramáticas se São Pedro e demais apóstolos e santos de devoção dos nordestinos não ajudarem, com urgência. Sem falar no padim Padre Ciço, reabilitado pela Igreja Romana, e que pode dar um auxiliozinho abrindo alguma torneira.

As cenas mostradas nas telas são dolorosas e impressionantes. Ceará sem chuva não constitui novidade, mas se esperava que obras públicas programadas para a região tivessem arrefecido a situação. O quadro atual, contudo, responde negativamente à boa perspectiva.

O panorama remete automaticamente para um dos livros do jornalista e escritor Lustosa da Costa, que é da região e autor de “Foi na seca de 19”, descrevendo dias que tanto fizeram sofrer os irmãos dali na segunda década do século XIX. Lustosa, falecido depois de sexagenário, não brigaria comigo pela transcrição: a seca é braba. Talvez pior que a de quatro anos antes, pelo menos para o gado, porque toda a pastagem se perdeu.

Do outro lado do rio, quase inteiramente seco, multidões de retirantes esperam a morte por inanição, debaixo das árvores queimadas pelo sol, discretamente vigiados pela Polícia para que não invadam a cidade. A ajuda, que o governo estadual mandou, as esmolas recolhidas pelo bispo, os recursos arrecadados pela Liga de Proteção aos Flagelados, acabaram. Agora se esperam obras do DNOCS, que poderão alistar muitos sertanejos.

Enquanto isto, eles são vigiados para que não perturbem o sossego dos doutores e aristocratas que curtem, geralmente no ócio, as rendas de suas fazendas e gados, suas plantações de algodão e carnaúba, os aluguéis de seus prédios, em casas palacetadas e velhos sobrados.

A despeito da adversidade, o cearense resiste, espera chuvas, que a seca não passe de estiagem, que os céus iluminem os homens que detêm algum poder na Terra e possa beneficiá-lo. Não sem razão, Euclides da Cunha classificou o sertanejo como “antes de tudo, forte”. Uma fortaleza posta à prova ciclicamente.

Na linha descritiva de Lustosa da Costa, um conterrâneo seu, médico, batizado na igreja do Rosário, em Fortaleza, Rodolfo Teófilo, também se ateve ao tema. Em abril de 1980, a Universidade Federal do Ceará, publicou de sua autoria: “A Seca de 1915”, em que oferece em “painel da seca, com todo o seu cortejo de desgraças”, no dizer do reitor daquela instituição, Paulo Elpídio de Menezes Neto.

As reportagens pela televisão se casam com o propósito de Rodolfo Teófilo, que recorda Euclides da Cunha, que se horrorizou vendo a seca através de uns versos de Guerra Junqueiro, que não teve modelo e sequer a viu.

O médico escritor, um paladino na luta em favor dos atingidos pelo terrível fenômeno, pergunta com relação ao poeta português: “O que diria se visse um pai no delírio famélico matar o filho para comer, uma desgraçada mãe, só ossos e pelancas, morta e respirando no meio da estrada, no seio a criança procurando sugar algumas gotas de leite do cadáver, um retirante animalizado, metido numa gruta, alimentando-se da carniça humana que encontrava nos caminhos…”

São cenas macabras que, pelo menos, a televisão ainda não mostrou.

Por Manoel Hygino dos Santos, 1° tesoureiro da Academia Mineira de Letras, ocupa a cadeira nº 23