Madrinha Sinhá é muito boa pra mim… Ela me dá comida, arruma roupas para eu vestir além de reservar um quartinho aqui perto da cozinha onde durmo e, vez em quando, troco de roupa. Tenho uma cama com colchão de palha, um travesseiro recheado de retalhos e duas cobertas. A cama é um pouco alta para a minha baixa estatura e tenho certa dificuldade ao deitar por causa das minhas entrevadas pernas. Não são totalmente entrevadas as minhas pernas, pois ainda consigo caminhar arrastando-as pelo chão. Não tenho nenhum sapato ou chinelo e meus pés estão sempre inchados. Às vezes pego um bicho-de-pé que coça muito. Por não conseguir dobrar a coluna e alcançar o pé, tenho que arranjar um caridoso para tirar o bicho pra mim. Também para tomar banho tenho que recorrer a uma velha lata de querosene onde esquento a água em uma trempe de duas pedras. A lata fica sempre no quintal junto à porta da cozinha, e eu a levo para o quartinho de guardar lenha quando vou me banhar. Junto a ela deixo sempre um velho copo de folha de flandres, que serve para jogar a água sobre minha cabeça. Água para o banho e para beber eu retiro da cisterna. Aliás, tirar água do poço é uma das poucas atividades que ainda consigo fazer. Desço a lata atada em uma corda enrolada no sarilho, espero que ela se encha depois de tombar de lado por uma pedra atada justamente para esse propósito. Em seguida recolho a corda girando o sarilho no sentido contrário. Difícil para mim é puxar a lata cheia para fora da boca do poço, mas com paciência consigo. Às vezes sobe um sapo junto com a água… Um daqueles mochés bobos que durante a noite, procurando água, acabam caindo lá dentro do poço. Apesar dos sapos, a água do poço é usada para cozinhar, lavar vasilhas e para as pessoas tomarem banho. Eu bebo é dela, pois o pote d‘água que fica na varandinha antes da cozinha está colocado em altura elevada que não consigo alcançar. Tem lá outro copo para tirar água, de borda serrilhada, que é para a meninada – os netos da madrinha Sinhá – não beber nele. A água desse pote vem de cacimbas lá da praia, trazidas pelo Crispim ou pela Cipriana. A casa da madrinha é muito grande e quase toda assoalhada. Tábuas largas que também ajudo passar pano para tirar a poeira que vem da rua trazida pelo vento e pelos muitos pés que transitam pela casa. Durmo cedo e tenho uma lamparina de querosene que acendo ao escurecer e que apago logo que me ajeito para dormir. Para acendê-la pego fogo de um tição no fogão, pois a madrinha não me deixa uma caixa de fósforos. Acho que ela tem medo que eu bote fogo na casa, dadas as minhas dificuldades de movimento. Dizem que ronco muito quando durmo e que isto é por causa do meu papo. Eu não importo quando os netos mais novos ficam pegando no meu papo puxando pra cá e pra lá como se fosse um brinquedo. Se a madrinha Sinhá os vê fazendo isso ela ralha com os meninos. Ela não gosta que eles me chamem de Zebu: – o nome dele é apenas Zé – como me batizou no dia que aqui cheguei. Eu não importo, pois Zé ou Zebu pra mim é a mesma coisa. Não sei bem como foi que vim morar aqui… Lembro que ainda era moço e que comecei guardando uma lenha que um carro de boi despejou junto ao portão aqui no beco e ela me pediu para guardar – pois vem chuva, ela disse. Em troca, ela me deu uma velha camisa do marido e comida. Com as tripas cheias, dormi aquela noite ali mesmo no quartinho de lenha, numas palhas no chão. E fui ficando… Agora já se passaram vários anos e fico ajudando numa coisinha ou outra, como cortar um assa-peixe para varrer o forno de assar biscoitos, arear forminhas de bolo, puxar água do poço, ou arrancar um mato no quintal. Naquele tempo eu não tinha as pernas tão entrevadas como estão agora… Acho que é reumatismo por tomar muita friagem e andar descalço.

Os meninos – os netos da madrinha – são muitos, e alguns encapetados que gostam de bulir comigo. Finjo de bravo, mas sou incapaz de machucar qualquer um deles. Xingar, eu xingo! Mas, nem consigo correr atrás para assustá-los… Tem uma, já maiorzinha, muito bonita e de olhos verdes, que é das mais endiabradas. Por isso, adotei agora uma maneira de deixá-la com raiva: toda vez que vou xingar um deles aproveito e xingo ela também. Assim: puta que pariu procê e Haydée. Ela fica furiosa!

O marido da madrinha, Sô João, já está também bem velho e surdo. Anda como eu, arrastando os pés calçados por um chinelo macio, e encapotado mesmo que faça pouco frio, pigarreando e fumando um fedorento cigarro. Morro de rir quando o vejo dar piparotes nas orelhas dos netos, ou se aproximando de um grupo com o cigarro aceso e, fingindo distração, encostar a brasa nas pernas de um dos moleques. Malvadeza! Mas isso o diverte muito, e a mim também. Todos os dias, pela manhã, ele confere as horas do relógio de parede com outro de bolso, que sempre carrega. Sobe às vezes em uma cadeira – em tempo de cair – para dar corda no relógio de parede. Após acertar, dá uma balançada no pêndulo, que fica vários dias num vai e vem ininterrupto pra lá, pra cá! Raramente ele vai ao quintal examinar os pés de ata próximos da porta, ao lado do poço, mas não mais se arrisca subir até a parte mais alta do terreno, a não ser quando precisa ir até a latrina, na casinha um pouco acima da pitangueira que fica ao lado do abacateiro. Eu também nem vou mais lá, pois faço minhas necessidades aqui mesmo: detrás da parede da casa de lenha.

A cozinha tem um negro fogão de lenha e um forno de barro. Por isso, o seu teto está recoberto de picumã, que enegrece até o velho armário onde a madrinha guarda panelas e pratos. Muitos ratos passeiam à noite pela cozinha em busca de restos de alimento. Sobre a chapa do fogão um bule de cor verde, também já enegrecido, mantém quase que fervendo o café que Sô João toma antes de cada cigarro.

Aos domingos a casa fica cheia quase que o dia todo. E o meu papo muito sofre… Mas está tudo bem, pois tenho cama e alimentação garantida até que meus dias se findem e eu possa retornar à terra – mesmo que num bastantão – e meu espírito aguarde uma nova e melhor oportunidade.

Por Adriles Ulhoa Filho
Bancário aposentado. Membro da Academia de Letras do Noroeste de Minas – Paracatu, MG. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 92º – Volume LXIX – 2014.