Daqui a oito anos, estaremos comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna. O encontro de escritores, artistas e jornalistas no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, foi um marco na história do Brasil, pelo que também representou política e ideologicamente.

Em princípio, os promotores do evento – a palavra assume aqui seu verdadeiro significado – queriam que os autores brasileiros, os artistas, tomassem ciência e consciência do que acontecia na Europa em termos de vanguarda do pensamento. Não era um movimento exclusivo desse segmento social, como afirmou Mário de Andrade em conferência, vinte anos depois, na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro, em 30 de abril:

“Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e umas outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a verificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional. Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal”.

Como agora acontece, a sociedade queria mudanças, não só as que- riam os intelectuais, os artistas, os escritores, o próprio desenvolvimento econômico e social queria transformação, adaptando-se ao novo tempo. Após os governos militares do início da República, os senhores rurais voltavam ao poder, fortalecidos pela vigorosa ascensão do café, que girava em torno do Eixo São Paulo – Minas. Sobreveio “a política dos governadores”, quando os mandatários estaduais apoiavam o governo federal e este os governos dos estados”.

Surgiram as oligarquias, grandes e prestigiosas famílias ou grupos políticos que se perpetuavam no poder. Minas e São Paulo, os estados mais populosos, se revezavam, fazendo a política do café-com-leite, que permaneceu até 1930.

Esse sentimento, consciência e atitude ganharam todos os segmentos aparecendo na música popular nos versos de Noel Rosa, lembrando que Minas dá leite, São Paulo dá café e o Rio de Janeiro dá samba. Não constituía a verdade, exatamente, mas era um espelho assemelhado da vida social, artística e política naquele período.

Após a primeira guerra mundial, terminada em 1918, em que um mineiro – Wenceslau Brás – se encontrava na presidência da República, as capitais brasileiras se metamorfosearam, à frente São Paulo. Houve um surto rápido de progresso industrial, a urbanização, o nascimento do segmento sindical, a burguesia cada dia mais forte, embora marginalizada pela política econômica voltada para a produção e exportação do café. A imigração europeia avançou, principalmente no sentido dos grandes centros, ou seja, São Paulo preferencialmente, e para a região cafeeira. De 1903 a 1914, o Brasil acolheu 1,5 milhão de imigrantes.

Nasce um novo país, dividido entre urbano e rural. Os trabalhadores se preparam, desde então, para embates em torno de suas reivindicações, os anarquistas aparecem sobretudo em São Paulo e publicam seus jornais, como La Battaglia e A Terra Livre. Eclodem na maior cidade brasileira as primeiras greves a partir de 1905, a mais importante delas em 1917.

Falava-se na Revolução Russa daquele ano, e o próprio Partido Comu- nista é fundado em 1922, representando simultaneamente o declínio anarquista.

Em setembro de 1922, um brasileiro chegava a Moscou para participar do IV Congresso da Internacional Comunista. Era Antônio Bernardo Canellas, de 24 anos, um dos mais jovens delegados dos 394 credenciados ao encontro. Canelllas sabia de cor e costumava repetir o pensamento de Kropótkin, anarquista russo: “Todas as coisas do mundo são de todos os homens, porque todos os homens delas necessitam, porque todos os homens colaboraram, na medida de suas forças, para produzi-las, porque não é possível avaliar a parte de cada um na produção das riquezas do mundo…”

A Semana de Arte Moderna compreendeu três sessões, nos dias 13, 15 e 17 fevereiro, principalmente por iniciativa do “festejado escritor, Sr. Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras”, como noticiou O Estado de S. Paulo e atraiu muita gente ao Teatro Municipal; gente dos meios intelectuais e artísticos, e curiosos. No saguão, pinturas e esculturas que causavam espanto.

O orador oficial da abertura foi Graça Aranha, que disse a certa altura: “Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de ‘horrores’. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida, se não são fogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros ‘horrores’ vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pela força do Passado.” A repercussão foi enorme, como se esperava. No dia 15, Menotti Del Picchia discorreu sobre arte e estética, lendo textos de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Plínio Salgado. O público miava e latia. Ronald de Carvalho leu Os Sapos, de Manuel Bandeira, uma crítica ao parnasianismo. Nas escadarias do Municipal, Mário de Andrade leu fragmentos de A Escrava que não é Isaura. Perguntou depois: “Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?…”

Confusão e críticas e apupos, mas o movimento estava lançado com predominância de nomes fortes do meio literário e artístico de São Paulo. Di Cavalcanti sublinhou o lado político do movimento com ataque à aristocracia e à burguesia. Mário de Andrade definiu: “Lirismo: estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado”.

Causou espécie a última noite. O maestro Villa-Lobos entrou em cena: de casaca… e chinelos; o público interpretou o episódio como futurista e vaiou. Só depois, pôde explicar que assim se apresentara no palco por força de um calo doloroso.

Entre os participantes da Semana, havia um mineiro, pouco conhecido presentemente: o poeta Agenor Barbosa, nascido em Montes Claros em 1896 e evocado recentemente por um historiador da região – Haroldo Lívio. Este reconhece que o vate norte-mineiro é até ignorado presentemente por seus conterrâneos, ainda que outro menestrel, Cândido Canela, o considerasse “o maior de todos os nascidos na cidade”. Foi reverenciado em São Paulo, que o elegeu para o rol dos dez maiores poetas paulistas, juntamente com Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia e outras celebridades e cresceu “ainda mais, conquistando lugar cativo no coração dos paulistas, que o tinham como um dos nomes gloriosos da literatura de São Paulo, a despeito de mineiro do sertão”.

Agenor, segundo Haroldo Lívio, foi o único participante aplaudido pelo público, que vaiara Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Mário de Andrade e outros famanazes das artes.

Em sua cidade natal, fez o curso primário e, com a transferência da família para Belo Horizonte, aqui iniciou o secundário, que concluiria em São Paulo. Também lá se formaria em Direito e colaria grau em 1926, retornando a Belo Horizonte. Aqui, ingressou no serviço público e na imprensa como repórter do Diário de Minas e da Folha de Minas, nos quais também publicava poesias de sua lavra.

De volta a São Paulo, ingressou no Correio Paulistano, admitido na redação, dirigindo também a editoria literária de A Cigarra. Pode-se dizer que se consagrara. Na paulicéia, em enquete da revista Panóplia, foi eleito como um dos maiores poetas de São Paulo. O escritor Mário da Silva Brito se refere a ele no livro História do Modernismo Brasileiro.

Em seu brilhante livro sobre a cidade, Nelson Vianna (1) transcreve soneto inédito de Agenor:

MONTES CLAROS

Na doçura sem fim do silêncio, que espalma
as suas asas sobre a noite, eu me avizinho
da terra, que me acena como um ninho
e, na distância, é sempre linda e sempre calma.
A minha terra vive dentro de minh’alma…
deixem que fale o coração, devagarinho…
Que eu pare um pouco, em meio à sombra do caminho
E lhe teça, a sorrir, este canto e esta palma.
Ouço, de longe, a voz do berço que me chama.
Voz serena de amor, de carinho e piedade
que é suave como um beijo e arde como uma flama.
Minha terra natal! Minha velha cidade!
Dentro do coração que te pertence, clama a dor do meu exílio e da minha saudade.

Djalma Andrade, da Academia Mineira de Letras, na seção História Alegre de Belo Horizonte, publicada no jornal Estado de Minas, exaltou-o: “Agenor Barbosa, quando jovem, foi um dos poetas mais queridos de Belo Horizonte. Muito magro, muito pálido, escrevia nas revistas versos líricos, que eram gravados de cor pelas garotas de 1915. Nas varetas do leque de uma moça, numa festa de barraquinhas, escreveu:

Quando for nosso noivado
Será tão lindo o teu véu,
Que um beijo o trará bordado,
Pelas santas lá no céu.

Quando do centenário de Montes Claros, em 1957, a comissão organizadora dos festejos decidiu incluir Agenor entre os convidados de honra, mas ele não se dignou de comparecer. O poeta Cândido Canela, enraizado no berço, tomou-se de dores, embora nem sequer o conhecesse, e escreveu uma série de cartas na quais um velho bardo, supostamente Esperidião Santa Cruz, afastado da terra natal há mais de meio século, demonstrava morrer de saudade e deplorava não regressar à origem para rever os amigos.

O historiador evoca, como o próprio Cândido Canela me contou: “Esperidião foi o pseudônimo que o autor das cartas criou para substituir o nome real do homenageado. A cidade inteira acompanhou a publicação, na Gazeta do Norte, das cartas chorosas que chegavam toda semana. Nos saraus familiares, tornou-se o assunto predileto, porque o macróbio Esperidião, apesar de ancião de escasso convívio, recordava-se nitida- mente da Montes Claros de sua mocidade. Declarava os nomes de sues antigos companheiros de bailes e serestas, como também se lembrava das donzelas românticas de seus tempos de rapaz. Ninguém sabia, exceto o jornalista Jair Oliveira, que se tratava de uma brincadeira do verdadeiro autor das cartas, e ambos se divertiam com o sucesso do público”.

A correspondência era tão fiel à realidade, que pessoas de boa memória acreditaram ter conhecido pessoalmente o missivista Esperidião Santa Cruz, que, ao final, ficou muito mais conhecido do que o próprio Agenor. Maria Ribeiro Pires, escritora e oradora de mão cheia, está à procura de exemplares dos jornais que publicaram as cartas, há mais de meio século.
A coleção, contudo, foi recolhida a local não sabido.

por Manoel Hygino dos Santos
* Jornalista, escritor, ocupa a cadeira 23 da Academia Mineira de Letras. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras  | ANO 92o – Volume LXIX – 2014

(1) Vianna, Nelson. Efemérides Montesclarenses, Parte II. Coleção Sesquicentenário, vol. 5, Editora Unimontes, Montes Claros.