Também tive uma gata em minha vida. Nasci em Transvalina e ali fui criado. Entre os membros da família, constava uma gata, Pupila, e um cachorro maior, Veludo. Um dia, Veludo desapareceu. Era escuro e manso. Sumiu. Acho que meu pai o levou para a Fazenda. Acho, não tenho certeza. Não se conversava com as crianças, elas não sabiam de nada que acontecia ao redor. Conversa mesmo só havia entre adultos. Quando havia segredo, coisas da família, indiscrições, o tom da voz baixava e se falava mais próximo do ouvido, uma espécie de caixa de notícias a serem preservadas confidências.

O certo é que, um dia, Veludo desapareceu do quintal e da cozinha. Pupila entrava e saía à vontade.

Nos intervalos da vida, um de nós punha Pupila no colo, fazia carinho no seu pescoço na cabeça, ela miava agradecida e feliz. Breve. De um salto saía para outro ambiente.

Criança, naquele meio, não tinha voz nem podia fazer perguntas, indagações. Transvalina desenvolvia um dos mais avançados sistemas educacionais, segundo rigorosa divisão do trabalho. Mãe, por exemplo, somente poderia educar a poder de chineladas. Pai, era diferente. Seu setor era o das correiadas, com fúria e ódio. Era trovão, perto da mãe, relâmpago.

No processo educacional de Transvalina, funcionava, e muito, o segmento Irmãos-mais-velhos. Às Irmãs cabiam os corretivos Beliscão e Puxão de Orelha. Aos Irmãos cumpriam os coques na cabeça. As protuberâncias da mão fechada golpeavam o crânio da vítima. Na ausência do Pai, dado a viagens, ocasionalmente correiadas. Por esse quadro um tanto esquemático, vê-se quão avançada esteve Transvalina, no seu rigoroso Plano de Distribuição de Encargos. Não foi surpresa, no entanto, o dia em que nós, crianças, tivemos o informe de que Pupila estava tuberculosa, triste pelos cantos da casa. Dias depois, do setor Irmãos-mais-velhos veio o comando de que deveríamos fazer desaparecer Pupila do nosso meio. Tudo de acordo com as leis vigentes, consoante a aprovação de Pai e Mãe.

Às minhas tarefas diárias, de obediente servo, juntou-se o descarte de Pupila.

Eu tinha um irmão mais próximo de minha idade, turbulento, brigador, agressivo.

Tinha vários apelidos: Bié, Mendonça, Chico Lara, Misto-Quente. Decidido ele era, embora desprogramado. Estilo rompe-rompe. Bié tomou a si levar Pupila dentro de um saco de aniagem, contando com a cumplicidade do primo Irineu de Ti’Pedro, oficial da mesma laia. Iria jogar o animal no Poço da Cancelinha, por onde passava naquele tempo o Córgo Felipão. Era tempo de chuva e o rio crescera, puxando a massa enorme de terra dos barrancos, numa cor amarelo-sujo. Quando galgamos a parte de cima da cidade, pela Rua da Caiçara, foise juntando enorme população de desocupados, dezenas de vadios e contraventores, todos dispostos a ajudar. Todos experientes bodoqueiros, quebradores de vidraças das janelas de casas, peritos em jogar pedras e em matar passarinhos. Uma vanguarda de arruaceiros. Também se fizeram presentes os acompanhantes do Circo Mundial, em debandada, depois de cantar em coro nos recantos do local:

“O raio de sol suspende a lua.
Viva o palhaço que está na rua.”

Parecia uma Cruzada, chefiada pelo Granadeiro-Mor Minervino. Alto, simpático, habilidoso, tinha pontaria infalível, podia acertar um calhau de pedra a cinquenta metros do alvo, sempre um ser vivo: pomba-rola, ticotico, bem-te-vi, codorna, arara, periquito. O que fosse.

Seu lugar-tenente era um mulato prosa, meião, nem alto, nem baixo, gozador, de nome Izidro. Fizera um estilingue potente, todos tinham medo de suas ironias, de sua valentia.

Quanto mais andava o grupo, mais adesões. Depois da ponte, no limite da área urbana, podia-se notar o valoroso esquadrão-da-morte, encarregado de dar cabo de Pupila. Iam jogar Pupila nomeio do Poço e cada um tentaria lapidar o padecente felino.

Na antiguidade cristã, lapidavam-se principalmente as mulheres, por suspeita ou acusação de má conduta. Séculos de civilização se passaram e agora teríamos apenas o sacrifício do gato enfermo. Todo mundo se sentia unido no ato de livrar Transvalina de uma peste que Pupila pudesse transmitir. Sábios cientes dos direitos humanos, a combater uma praga em potencial.

Antes do bombardeio, Minervino pediu silêncio à turma e rezou em voz alta uma Ave Maria e um Padre Nosso, acompanhado pela totalidade. Dava gosto ver aquela multidão de malfeitores de mãos dadas, a bater o pulso no peito: Deus seja louvado!

Jogada Pupila no meio do Poço, choveram pedras como antes nunca se vira. Somente Izidro conseguira alojar um petardo roliço na cabeça da gata, que nadava desesperadamente em direção da margem contrária. A correnteza a pegara de cheio e arrastava para longe do poço. Até hoje não se sabe se Pupila se salvou, ou não. Na volta, cada qual sem exceção, contara que vira Pupila morrer. A cidade não precisava temer mais nada.

O divino esquadrão livrara Transvalina de um potencial – indescritível de dissabores. Nossos heróis foram louvados na igreja, na Câmara Municipal, no Boletim da Prefeitura e até na gerência do Banco do Brasil. O vereador de Vargem da Palma propôs, até, que o Poço da Cancelinha se chamasse, dali por diante, Poço Pupila. Assunto de tamanha gravidade vai demorar a ser aprovado, tais os trâmites legais.

por Fábio Lucas
Escritor, crítico literário, membro da Academia Mineira de Letras (cadeira 22) e da Academia Paulista de Letras. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 92º – Volume LXX – 2014