De repente, cantoria

Quero saudar todos os presentes, de modo especial o Dr. Olavo Romano, presidente da academia Mineira de Letras, a FIAT e também o professor, poeta, cordelista José Mauro da Costa que viabilizaram minha vinda a Belo Horizonte e a quem dedico essa Estrofe:

Neste encontro nota dez
As minhas forças restauro
Com o professor José Mauro
Meu parceiro em dois cordéis
Caminha pelo viés
Por onde a cultura passa
Com esforço e muita raça
Dedicação e afeto
É ele o pai do projeto
“Livro de graça na praça”

O pouco que sei da cultura nordestina apendi muito com um dos maiores mestres: Ariano Suassuna. Assim sendo, peço ao professor José Mauro declamar ou ler uma homenagem que fiz em versos ao grande mestre:

Ariano Suassuna
Onde a cultura é tribuna
sua voz foi a mais alta,
houve o primeiro mas falta
o segundo Suassuna.
Parte e deixa uma lacuna
que não será preenchida.
Sua forma definida
na maneira de escrever,
não tinha como dever
mas como missão de vida.

Com originalidade
a sua missão cumpriu
foi quem melhor traduziu
nossa nordestinidade.
Porta-voz e autoridade
Dos valores culturais.
das fontes originais
um divulgador constante,
como um cavaleiro andante
dos tempos medievais.

Cronista do dia a dia,
um defensor ardoroso
das estórias de trancoso,
elas crenças, da remaria.
Repórter da cantoria,
do cordel, do desafio.
sem ele até desconfio
que morre a nossa memória,
e o circo da nossa história
poderá ficar vazio.

Muitas vezes contestado
ele cansou de dizer
que a arte não pode ser
um produto de mercado.
Sempre que era perguntado
dizia de forma honesta,
sem rodeio, sem aresta,
sem sofisma, sem engodo,
que a arte é no seu todo:
vocação, missão e festa.
“Auto da compadecida”
sua mais famosa peça,
termina como começa
contando os dramas da vida.
Inspirada e extraída
do mundo cordeliano.
O mestre paraibano
teatrólogo e ensaista,
era também cordelista
o genial Ariano.

Nos seus trabalhos defende
um Brasil mais brasileiro,
contra o modismo estrangeiro
que a mídia comprada vende.
Brasil onde o inglês pretende
ser o idioma oficial.
Nos trazendo grande mal,
fazendo morrer à míngua
o encantamento da língua
que herdamos de Portugal.

Nas palestras que fazia
com humor e fundamento
esbanjou conhecimento,
semeou sabedoria.
Era quem mais conhecia
o que o Brasil desconhece.
Quando um astro se opaquece
acaba-se a iluminura.
O céu da nossa cultura
sem esse astro escurece.

Foi guardião da raiz
da nossa ancestralidade,
construiu a identidade
cultural do meu país.
Da terra agora distante,
tornou-se então palestrante
nas cortes celestiais.
Hoje faz parte do time,
da academia sublime
dos mestres universais.

Não há quem saiba com precisão, onde, quando e com quem nasceu a poesia feita de improviso ou escrita. Fazendo um longo caminho no tempo, vamos encontrar o Rei Davi escrevendo ou improvisando os Salmos, poemas bíblicos que na sua origem eram rimados e metrificados. Outro poeta que ficou famoso – esse sim cantava de improviso – foi Homero, poeta cego da Grécia antiga. Nasceu no século VIII A.C. cantava de aldeia em aldeia e nos deixou dois poemas épicos: a Ilíada e a Odisseia.

Houve ainda os Fulas africanos, nômades tangedores de animais, que tinham o hábito de caminhar do nascente para o poente durante o dia e à noite cantavam versos de improviso em homenagem ao luar.

Pesquisando com mais profundidade, tudo faz crer que essa poesia que cultuamos tem origem árabe. Quem escuta um lamento árabe nota a semelhança com a gemedeira de cantorias, naquela toada monocórdia.

Quando em 711 depois de Cristo, os mouros invadiram a Península Ibérica, onde permaneceram por mais de 600, levaram um instrumento por nome rabab, que na região passou a se chamar viela, e no nordeste passou a se chamar viola cuja afinação é Ré Lá Fá Dó Sol.

Naquela região Ibérica onde nasceu o movimento trovadoresco, com João Soares de Paiva em 1196, é de onde vêm o jogral trovador, de classe humilde, e o segrel, que pertencia a nobreza. O jogral era pago para cantar nos palácios reais. Inclusive houve vários reis trovadores e, para não me alongar muito destaco dois: D. Afonso Sanches e D. Diniz. Este último o fundador da Universidade de Coimbra, onde ministrei palestra e cantei no Teatro Paulo Quintela, que fica no centro da Universidade.

Hoje o mundo quase todo canta de improviso: cantam na Catalunha, na Galiza, em quase toda a América do Sul. Há improvisadores em Okinawa, no Japão. Quando estive na Palestina também encontrei repentistas, lá o repentista se chama Zagal.

Há um aspecto interessante na poesia cantada que me chama muito a atenção: é a métrica setissilábica; ela é universal. Quando participei do Festival Mundial de Repentistas nas Ilhas Baleares, que ficam nas margens do Mediterrâneo, todos cantaram nessa métrica. E na Palestina também.

Vamos a um exemplo da trova. Com poesia se escreve tudo, até epitáfios, que são inscrições tumulares.

O poeta e advogado Quintino Cunha pediu aos familiares que seu epitáfio deveria ser este:

O Pai Eterno segundo
Refere a Bíblia sagrada
Tirou o mundo do nada
E eu nada terei do mundo.

Vizinho ao túmulo desse poeta eu li uma quadra que um genro escreveu no túmulo da sogra, diz o seguinte:

Aqui dorme a minha sogra
Que viveu me enchendo o saco.
Não tendo mais o que encher
Veio encher esse buraco.

Como creio que a poesia seja um dom, há pessoas que desde muito novas já sabem o que é rima. Eu tenho duas netas, uma é Crhis a outra Beatriz. Quando crianças, perguntei: Crhis, com que rima seu nome? Ela respondeu: Com Beatriz. Quando perguntei a Beatriz: com que rima café, ela respondeu: com pão.

O primeiro improvisador brasileiro de que se tem notícia foi Gregório de Matos Guerra, que nasceu na Bahia em 1636, fez Ciências Jurídicas na Universidade de Coimbra e era conhecido como “Boca do Inferno”, porque na parte profana de sua poesia, criticava os homens da Igreja e da política de sua época usando palavras e rimas de baixo calão, obscenas mesmo.

O 2º improvisador do Brasil foi o padre Domingos Caldas Barbosa, nascido no Rio de Janeiro em 1739. Sacerdote, poeta e músico, é autor de lundus e criador da modinha. Improvisava trovas tocando viola. Sua obra está reunida no livro Viola de Lereno, pseudônimo que usava. É patrono da cadeira nº 3 da Academia Brasileira de Música.

Em 1797, nasceu em São João de Sabugi (RN), o poeta Agostinho Nunes da Costa, que depois foi morar na Serra do Teixeira, (PB). Ali nasceram seus três filhos também poetas: Hugolino, Guilherme e Nicandro. Com esses nasce toda história da cantoria no Nordeste. Portanto, são esses os pioneiros dessa arte que já tem 160 anos.

Em seguida vêm as grandes pelejas de desafios, sendo a primeira delas em Patos (PB), com Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira. Inácio era negro escravo do fazendeiro Manoel Luiz. Alcançou a liberdade por intermédio da cantoria, e também alforriou a mãe.

A Cantoria era feita em quadra. No começo do século XX o repentista Silvino Piramá mudou para sextilha, modalidade poética que já existia no tempo de Camões.

Falando sobre saudade, o poeta Severino Lourenço fez essa estrofe de improviso:

Essa palavra saudade
Conheço desde criança
Saudade de amor ausente
Não é saudade é lembrança
Saudade só é saudade
Quando morre a esperança

Saudade é um parafuso
Que quando na rosca cai
Só entra se for torcendo
Porque batendo não vai
Depois que enferruja dentro
Nem destorcendo não sai

O poeta Antônio Pereira, seguindo o mesmo assunto, fez esta sextilha:

Quem quiser plantar saudade
Primeiro escalde a semente
Plante num lugar bem seco
Onde o sol bate mais quente
Que se plantar no molhado
Quando nascer mata a gente.

Na sextilha o cantador canta também desafio. Muitas vezes o cantador com um pouco mais de cultura repreende alguns deslizes daquele que tem menos conhecimento.

O poeta Dimas Batista, o maior cantador que conheci e o mais culto, ouviu o parceiro pronunciar Setubal. Ele corrigiu e o outro continuou falando Setubal. Dimas diz:

Você chama Setubal,
porque não aprendeu bem.
Porém eu chamo Setúbal
Como lá no livro tem
Não que eu queira me importar
Com Setúbal de ninguém.

Ainda Dimas Batista num desafio com o irmão Otacílio Batista, este chama Dimas de cachorro. Dimas o repreende dizendo:

Por isso é que teu irmão
quando canta te reclama
És fruto do mesmo galho
És folha da mesma rama
Quem chama um irmão cachorro,
Vendo a mãe como é que chama?

Dimas Batista era tão genial que, quando participou de um festival no Rio de Janeiro em 1959, o grande Manoel Bandeira lhe fez uma homenagem.

Vocês me chamam poeta
Eu não sou poeta não,
Poeta é Osmar Batista
E Otacílio seu irmão…

Antigamente havia a cantoria de elogio. Ou seja, o cantador falava os nomes dos ouvintes e estes iam colaborando, colocando o pagamento numa bandeja.

O repentista Onésimo Maia fazia uma cantoria desse tipo em Natal (RN), quando Aloísio Alves – na época governador naquele estado – ao invés de colocar o dinheiro na bandeja botou no bolso do poeta, que imediatamente fez essa estrofe:

Dr. Aloísio Alves
agora compareceu
Botou dinheiro no meu bolso
Vou ver quanto ele me deu
Do jeito que ele é sabido,
Pode ter levado o meu

O nordestino, apesar de sofrido, tem um humor constante, tanto no verso como na prosa.

Há 50 anos, quando saí da região rural em que nasci, fui fazer um
programa de rádio. Dias depois quando voltei, um conterrâneo analfabeto
me disse:

“Geraldo eu ouvo o seu programa todo dia…”
Eu brincando falei: fulano não é ouvo, ovo é de galinha, e ele perguntou: e como é que se diz?
Eu falei ouço.
Completei: osso também é de galinha.
Ele disse: é de galinha também.
Há nesse tipo de cantoria de elogio uma pessoa informando ao repentista: chame fulano, fale de sicrano. O cantador Luiz Campos juntou-se com várias mulheres e não casou com nenhuma. A que ele mais amava o deixou e foi-se embora com um vizinho. Numa cantoria alguém pediu que ele elogiasse um fazendeiro que havia ficado viúvo há poucos dias. O outro poeta finaliza uma estrofe dizendo: “nunca mais teve alegria depois que a esposa morreu”. Luiz Campos, que também estava sem mulher, pegou a deixa dizendo:

Eu perdi ele perdeu
Tudo quanto a gente tinha
Ele se queixa de um câncer
Que levou sua rainha
E eu da falta de vergonha
Que deu na cara da minha

Já que falei de casamento, o poeta Oliveira de Panelas fez esta sextilha:

Vejo muita diferença
Do presente para o passado
Salomão com mil mulheres
Foi um homem abençoado
E hoje se eu tenho duas
o padre diz que é pecado

Continuando a história da cantoria:
Depois da sextilha surgiram várias modalidades de cantoria. Inclusive é o segmento cultural brasileiro que mais tem modalidades: sextilha, mourão, quadrão, coqueiro da Bahia, martelo agaloprado, martelo alagoano, gemedeira, 10 de queixo caído, 7 linhas, martelo miudinho, galope a beira-mar e muitos outros. São em torno de 70 a 80 estilos ou modalidades. Se pesquisarmos a música brasileira não chegaremos a 30.

Exemplo de mourão:

Os irmãos Heleno e Severino Lourenço cantavam quando Heleno começa meio sem rumo e diz:

Eu sou maior do que Deus
Maior do que Deus eu sou
Severino: Se você nunca se engana
Nesse instante se enganou.
Heleno: Eu não estou enganando,
Eu sou maior no pecado
Porque Deus nunca pecou.

Exemplo de galope a beira-mar cuja estrofe é composta de 10 versos
de onze sílabas. Seu criador foi um poeta vaqueiro, Zé Pretinho. Termina
sempre com o refrão: “Nos dez de galope na beira do mar”.

Um galope de Dimas Batista:

Nasci no sertão desfrutando as virtudes
Dos tempos de inverno fartura e bonança
Depois veio a seca fugiu-me a esperança
Diante de cenas cruéis e tão rudes
Vi secos os rios, as fontes e açudes
E eu que gostava tanto de pescar
Saí pelo mundo tristonho a vagar
Fui ter numa praia de areias branquinhas,
Olhando a beleza da água marinha
Cantei meu galope na beira do mar.

Sobre a criação do baião, como contribuição da cantoria na música brasileira no meu encontro com Luiz Gonzaga em Manga aqui em Minas Gerais ele me falou: “Esse baião que eu toco e canto, tirei da viola de vocês”.

Há muitos cantores famosos e compositores que beberam nessa fonte da cantoria. Eu citaria além de Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Raimundo Fagner, José Ramalho, Amelinha, Elba Ramalho e outros nomes.

Amelinha gravou do poeta repentista Otacílio Batista: “Mulher nova bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor”. São estrofes num mote de martelo.

Elba Ramalho gravou de Ivanildo Vila Nova e Bráulio Tavares: “Imagino o Brasil ser dividido e o nordeste ficar independente”, também versos num mote de martelo.

Raimundo Fagner gravou do poeta Patativa do Assaré: “Vaca estrela e boi fubá”.

Luiz Gonzaga gravou também do poeta Patativa do Assaré, “A triste partida” que são versos onze silábicos cantando as cenas das secas nordestinas.

O grande romancista José de Alencar quando idealizou fazer o romance Iracema, começou rabiscando em versos depois resolveu fazer em prosa. Uma curiosidade: o nome Iracema foi tirado da palavra América, portanto é um anagrama.

Durante muitos anos, o repentista mais famoso do nordeste foi o cego Aderaldo, cearense de Crato, radicado em Quixadá e depois em Fortaleza. Homem de um coração imenso. Ficou famoso no mundo da cantoria com a peleja com Zé Pretinho. Quando falei que ele tinha um coração imenso, é porque, mesmo sendo cego, tinha uma creche onde adotou mais de 30 orfãos.

A nossa grande luta tem sido no sentido de a cantoria ser estudada nas escolas, ser nova disciplina, matéria escolar. A Editora IMHEP editou nosso livro A história de Antonio Conselheiro, que está sendo utilizado em muitas redes municipais de ensino, em várias cidades do Nordeste.

Finalizo este nosso encontro declamando alguns versos que fiz, baseado numa palestra de Ariano Suassuna, quando ele questionou a história do evolucionismo de Charles Darwin e o mundo dividiu-se em criacionistas e evolucionistas

Ariano mostra um pegador de roupa e diz o seguinte: “Vejam que coisa simples e útil, se a gente aperta ele abre, se solta ele fecha. É criatividade do homem. Daqui a 500 mil anos, o macaco não será capaz de inventar um negócio como esse. Como pode o ser humano, tão inteligente, ser filho de animal tão burro?”

Depois que ouvi essa palestra. Escrevi “O macaco e o homem”

Aprendi com minha mãe
Desde o tempo de menino,
Que o homem conforme a Bíblia
É criação do divino.
Disse um cientista fraco
Que o homem vem do macaco,
Eu não creio nem combino

Eu ser filho de macaco?
Isso não me satisfaz.
Bicho é bicho, gente é gente.
Não misture os animais
Porque só antigamente
Macaca paria gente
E agora não pare mais?

Se o macaco é pai do homem
O filho não puxa aos pais,
Porque nos procedimentos
São bastante desiguais.
Não tem macaco roubando,
Matando nem assaltando,
Do jeito que o homem faz.

Se o macaco é pai do homem
O que foi que aconteceu?
Se o pai é que ensina o filho
A falar do seio seu.
Nisso a ciência se cala
Se o macaco não fala
Com quem o homem aprendeu?

Eu não sou contra o macaco,
Nem contra os costumes seus.
Macaco ser pai do homem
Isso é coisa dos ateus.
Cada um com seu capricho,
Se é de eu ser filho de bicho
Quero ser filho de Deus.

Mas quem acredita nisso,
Quem nessas coisas tem fé
Assim que avista um macaco
Já sabe o seu pai quem é
Estire o braço e a mão
E diga com educação:
A benção, pai chimpanzé.

Dados Biográficos
Nasceu em Cedro (CE), reside em Fortaleza. Cantador, cordelista, repentista, tem vários livros publicados, cds gravados. Vencedor de inúmeros festivais no Brasil e no exterior. Apresenta o programa “Ao som da Viola” na TV Diário (CE) contato: (85) 9948-7978. Por ocasião de seu cinquentenário de cantoria, este ano, entre incontáveis comemorações foi também homenageado com o cordel “Dois velhos rabugentos”, elaborado pelos professores mineiros Beto Vianna e José Mauro da Costa, com prefácio do médico e escritor Ronaldo Simões Coelho.

por Geraldo Amâncio Pereira
Palestra proferida na Academia Mineira de Letras, no projeto o Autor na Academia, em 10.9.2014. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | ANO 92º – Volume LXX – 2014