Na antiga Praça do Mercado de Salinas, incrustada na encosta do morro, se assentavam quatro construções angulares: o sobrado do Cel. Idalino Ribeiro, a igreja matriz de Santo Antônio, o sobrado do Cel. Procópio Cardoso Araújo e o Bazar Almeida, de estoque variadíssimo e modestamente instalado na esquina da rua do Cisco, onde moramos algum tempo, entre as famílias do seu João Cruz e do seu Antoninho Bernardino.

O ponto mais alto da vertente, à esquerda de quem subia da beira do rio, da cadeia e da casa da minha comadre Codó era o sobrado do Cel. Idalino. Sua fachada, clara e sóbria, deixava entrever, lateralmente, o edifício do fórum e ao fundo, num arremedo de largo menor, a varanda graciosa da casa do seu Basílio e dona Mulata, irmã do seu Idalino.

À direita, meio escondida pelo muro do Grupo Escolar Dr. João Porfírio, construído posteriormente, avançava a escadaria da igreja do padroeiro da cidade, Santo Antônio. Sua torre altíssima e altaneira
compensava a interferência da escola e dali os sinos anunciavam, em badaladas que ecoavam para além da praça, mortes de anjinhos e pecadores, os chamados solenes para rezas, missas e procissões, além de alertar para algum fato, absolutamente, extraordinário, como o incêndio do depósito de armas, munições e foguetes do Cel. Moisés Ladeia, que ameaçou mandar pelos ares toda a vizinhança – mas esta é outra história.

A imponência do sobrado do Cel. Idalino era amenizada pelo Mercado Municipal, um pavilhão bonito e alongado, aberto em grandes arcos e construído no meio do largo, atravessado no declive da praça. A penumbra fresca do seu interior acolhia feirantes, negociantes, roceiros, compradores, tocadores de viola e sanfona, além de homens troviscados que lhe davam vida nas sextas-feiras e sábados, em contraste com a quietude modorrenta dos outros dias. Entre o Mercado e o sobrado pairava a majestade frondosa do jenipapeiro cuja sombra aliviava o sol causticante e a quentura emanada das pedras do calçamento. Era possível ouvir o ‘ploft’ dos grandes frutos que, ao cair, assanhavam a criançada alvoroçada em apanhá-los. Agarradas ao pavilhão do mercado, alongando-o, havia duas construções de pequeno porte, uma delas assobradada, a loja do seu Juquinha Freire, a outra era (a loja) de Chico Nery, que tinha sido sacristão e era barbeiro. Funcionava, do outro lado, abertas para a parte mais alta da Praça, o comércio de Sidelcino Costa e do meu compadre Osmany Ribeiro, filho do Coronel.

O prédio do Grupo Escolar dr. João Porfírio, até hoje bem conservado, era em formato de “U”, com um pátio interno, onde nos reuníamos em filas organizadas, antes do início das aulas. Também servia para aulas de ginástica e para ensaios do hino nacional. Quando chegava à cidade alguma autoridade, deveríamos entoá-lo com correção e fervor, além de cantar outros hinos e canções ensinados pelo Dr. João Cardoso. Antes de alcançar o pátio, na entrada, alojavam-se, solenemente, o grande salão com palco e bastidores onde se realizavam grandes festas. Como aquela organizada para Dom Antônio de Almeida Morais Junior, bispo da diocese de Montes Claros, a que pertencia Salinas, e segundo os adultos, um grande orador. Para mim era um homem lindíssimo.

De suas inúmeras janelas de madeira avermelhada que rodeavam toda a escola, podia-se ouvir a voz das professoras e o vozerio cantado das crianças recitando tabuada ou silabações das antigas cartilhas. A grande fachada da escola se estendia, perpendicularmente, aos fundos do mercado de frente para a loja do seu Chico Nery. Externamente, à esquerda do grupo escolar, o antigo pé de magnólia, de tronco alto e nodoso, exalava um perfume que invadia as casas de seu Lauro Rodrigues – o palacete de colunas – e a de seu Simplício Miranda, pai do nosso diretor José Miranda, substituído, mais tarde, por Mamãe.

Do lado oposto ao grupo escolar, num conjunto que formava a lateral esquerda da praça para quem a vislumbrasse da esquina do Bazar, as casas eram bem rentes umas às outras e serviam ao mesmo tempo de moradia e comércio ou consultório. A parte ocupada por tais atividades era compensada pelos fundos. Lá no alto, fazendo esquina com a rua João Ribeiro, moravam Siá Na e o professor Elídio Duque, já idosos. Abaixo, a casa e o consultório do dr. Olínto Santana, cirurgião-dentista formado na Bahia e de Dona Dinorah. Em seguida, na mesma calçada, desfilavam a moradia do Cel. Moisés Ladeia, cujo grande quintal alojava um depósito de fogos, armas e munições, a Loja Tico-Tico fundada pelo Joaquim José Correia, que ali morou com dona Honorina, anos atrás. Depois, nós, a família de Lúcio Ramos e dona Wanda, a loja do seu Lauro Rodrigues, a casa de João Cardoso e dona Laura e por último Abelardo Ladeia e dona Diva Ladeia, professora do grupo e amiga de mamãe.

Na parte mais baixa da praça, outra “murada” de casas e lojas.

Começando pelo Bazar e abrindo portas para a praça, ficavam a casa de dona Vidinha e Sinhô Mendes, a loja de Seu Joaquim Ruas (nunca mais tive notícias deles), a casa e loja do primo Wilson Correa, o bonito chalé de seu Noeno e dona Mica, e a grande residência do dr. Clemente Fernandes Medrado e dona Ciranda, que vinham do Rio nas férias porque ele era deputado federal e genro do Cel. Idalino.

Se ficássemos de pé no alto da escadaria da igreja, avistávamos, além do pátio da escola, o sobrado do Cel. Procópio que residia ao lado, numa casa também assobradada, aberta para o jardim que ao fundo do Grupo Escolar e em direção à rua da Baixinha e à ponte, formava um largo menor – hoje praça Cel. Procópio Cardoso de Araújo.

Avistaríamos, ainda, outro beco que desembocava no rio, e as casas de Vó Milota, tia Violante e seu Mendo Correa, de seu Preto Costa e dona Belina, e a residência do seu Juquinha e dona Sazinha Miranda, famosa por seus cálculos de numerologia, exercidos em segredo. Sua filha foi, por causa disso, batizada Olga May Miranda Freire – e tornou-se grande dama do teatro diamantinense. Também foi professora de teatro e dança no grupo escolar e éramos todos apaixonados por ela.

Dos grandes acontecimentos que impactaram a praça, lembro-me, vagamente, da chegada do governador Benedito Valadares, recebido pelos alunos que agitavam bandeirinhas. Dela participei, levada pela mão de mamãe, pois ainda não frequentava a escola.

Depois, quando veio o então candidato J.K., a festa foi só do pessoal do P.S.D. e fiquei contrariada porque meu pai, do P.R., não me deixou comparecer e nem mamãe providenciou uma roupa nova, digna de festa. O incêndio do depósito do Cel. Moisés trouxe pânico e desespero, porque Salinas não tinha corpo de bombeiros. Diziam que foi causado pelo Zé Cozinheiro, empregado da família. Era um negro ensimesmado, de feições grosseiras, andar claudicante, e apaixonado por uma das lindas netas de Seu Ladeia. Num manhã de domingo, paramentou-se com uma roupa nova e marcou hora para falar com o patriarca. Pediu a moça em namoro. Seu Ladeia o ouviu com atenção, calmamente, explicou, com delicadeza, que a menina já estava comprometida.

Desesperado, Zé Cozinheiro se retirou levando, em segredo, seu amor contrariado. No dia seguinte, num gesto insano ateou fogo ao cômodo isolado do quintal, depósito de pólvora, bolinhas de chumbo, munições e fogos de artifícios.

A vizinhança sentiu um cheiro estranho, seguido de pipocar de balas e explosões de pólvora, tudo ao mesmo tempo. Constatado o incêndio organizou-se uma fila de voluntários que passavam potes d’água de mão em mão.

Transtornado, Frei Gotardo ordenou ao sineiro que repicasse um toque de alerta, o que foi pior, porque uma multidão de curiosos correu para a praça. Ninguém sabia o que fazer. João Garapa, buscador de água do rio para a casa de Seu Ladeia teve um ataque de alegria. Começou a
pular, rir e imitando com as mãos o zumbido dos rojões e a trajetória dos foguetes. Gritava sem parar:

– “Chii!…to…to Viva São João! Viva o Cel. Ladeia!”

Depois dançava batendo palmas, certo de que participava de uma festa extemporânea.

Alguém se lembrou então de chamar o Cel. Joaquim Miranda, que era mesmo coronel aposentado do corpo de bombeiros da capital, e não da Guarda Nacional, como os outros. Chegando ao local, afastou a multidão e com ajuda de poucos dominou prontamente o incêndio. Certas de que a praça iria pelos ares, as mulheres que rezavam o terço chorando em aflição extrema atribuíram, de imediato, a Santo Antônio, o milagre do fogo debelado.

por Iara Tribuzzi
Professora aposentada, escritora; reside em Belo Horizonte. Texto publicado na Revista da Academia Mineira de Letras | Ano 92° – volume LXX – 2014.