Novo livro da escritora, eleita recentemente para a Academia Mineira de Letras, percorre exemplares da fauna e da flora de maneira singular

 

À escritora Maria Esther Maciel sempre pareceu convidativo o exercício de articular pesquisas às quais se dedicava (até mesmo por diletantismo) a seu ofício-mor, transmutando conhecimento em criação. No recém-lançado “Pequena Enciclopédia de Seres Comuns” (Todavia) não foi diferente. Tendo sido a biologia um tema que sempre atraiu a sua atenção, a mineira apresenta um breviário no qual seres de distintas naturezas – do reino vegetal ou animal –, e com nomes populares bem instigantes, ganham uma descrição curta, mas detalhada, na qual características reais se somam a elementos diversos, seja uma pitada de humor ou mesmo uma suave crítica ao descaso do homem com a natureza. Tudo isso temperado com a reconhecida maestria literária da autora.

São 110 páginas nas quais os verbetes ganham ilustrações esmeradas de Julia Panadés. O livro é dividido em quatro partes, sendo que os nomes dados a cada uma já dão indicativos claríssimos do que abarcam: “Marias”, “Joões”, “Viúvas e Viuvinhas” e “Híbridos”. Antes de seguir adiante, vale lembrar que a empreitada dialoga com iniciativas afins de autores como o francês Marcel Schwob, o argentino Jorge Luis Borges e o italiano (nascido em Cuba) Italo Calvino.

A ideia, na verdade, é uma atualização de um projeto anterior. Ela, que sempre se sentiu instigada a perscrutar catálogos e enciclopédias, chegou a esboçar, tempos atrás, o projeto de um livro que, na sua cabeça, iria adquirir uma feição próxima à de uma enciclopédia. “Mas, por problemas de ordem médica, uma sucessão de perdas que tive, acabei adiando. Ficou engavetado”, explica. Foi já neste período de pandemia da Covid-19 que veio a ideia da “Pequena Enciclopédia”, que acaba de aterrissar nas prateleiras. “Como naturalmente fiquei mais reclusa, mais voltada para o dia a dia, enfim, com mais disponibilidade de tempo, vamos dizer assim, comecei a vasculhar as gavetas, a reler textos… E resolvi retomar essa ideia. Só que ela se concretizou de uma maneira completamente diferente daquela anterior, pois aproveitei muito das minhas experiências posteriores (à época do projeto anterior)”, explica.

A autora conta que a grande maioria dos seres presentes nas páginas do breviário é real – muitos, aliás, fazem parte do dia a dia das grandes cidades, como a maria-fedida, aquele percevejo verde que volta e meia adentra as janelas das nossas casas. “Alguns poucos são inventados – mas possíveis. Ou seja, nada de monstros”, brinca. Ela revela ainda que o processo de garimpo teve início pelas aves, aliás, a partir da leitura de uma obra sobre a Mata Atlântica. “Depois, num segundo momento, acabei optando por incluir répteis, mamíferos, insetos e plantas. Feita a lista de dezenas e dezenas de seres, parti para uma seleção”.

Criações

Um exemplo inventado é a “Maria-Vai-Com-As-Outras”, que ocupa uma página (a 32), que prescinde de ilustração. Como “nome científico” de “Maria Marienses”, ela é apresentada como uma humana solidária. Na parte dos Joões, o ser criado foi o João Doidão, que tem o poder de, quando bravo, friccionar suas pernas escanifres, soltando faíscas. Da parte dos híbridos, ela criou a Lagarta-Dama-do-Mato com base em um personagem imaginado por seu filho, Ricardo, autor de romances de fantasia.

Na seção das Viúvas e Viuvinhas, a surpresa é encontrar, na descrição da fictícia Viuvinha-Humana (“Homo Sapiens Viuvensis”), a ilustração com os traços da própria Maria Esther. A ideia, vale dizer, foi de Julia Panadés. “Num primeiro momento, eu fiquei um pouco reticente (em inseri-la no livro), encabulada. Pensei que poderia ficar uma associação muito explícita (já que a autora é viúva). Mas depois acabei me rendendo, pois percebi que dava um toque interessante ao tirar o peso que a palavra ‘viúva’ tem”. Ela entende inclusive que, de certa maneira, escrever esse verbete foi uma maneira de elaborar a perda. “Viajando criativamente. Acho que foi um movimento importante”.

Aliás, ela faz questão de tecer elogios a Julia. “Foi uma parceria muito prazerosa. Ela realmente entrou no registro do livro e articulou as ilustrações científicas com a imaginação poética; o mesmo movimento que eu havia feito no texto, ela fez na feitura dos desenhos. Percebeu de imediato a lógica que atravessava o trabalho”.

Outro ser imaginário, o Peixe-Banana, na verdade, veio do universo de J.D. Salinger, mais precisamente do conto “Um dia ideal para os peixes-banana”, publicado em 1948 na revista “The New Yorker”, e mais recentemente reunido na coletânea “Nove Histórias”. “Nela, foi uma das histórias que mais me tocaram. Só que, lá, ele aparece como uma referência, não como um personagem”. Em tempo: no caso dos seres fictícios, os nomes científicos foram criados pela autora. “Fico até imaginando a reação de zoólogos e botânicos (risos), porque brinquei muito com as descrições”.

Por último, mas não menos importante, Maria Esther Maciel enfatiza a questão ambiental em sutilezas como na descrição do peixe Maria-Luísa, em que o leitor se depara com a notícia de que um exemplar foi encontrado entalado numa argola de plástico, numa praia do litoral paulista. Ou na do cágado Tigre-D’Água, flagrado na vitrine de uma loja, boquiaberto, sem entender o motivo de estar no cárcere. “Eu tenho uma causa, a defesa da natureza. Tenho essa preocupação que é muito forte, essa tristeza com a destruição desenfreada da Amazônia, do Pantanal, das reservas ambientais. Portanto, não poderia deixar de inserir (esses toques). Muitos desses seres que estão no livro vivem numa situação de perigo, alguns estão em extinção, ameaçados”, diz, desolada.

“Pequena Enciclopédia de Seres Comuns”

Maria Esther Maciel

Editora Todavia, 110 páginas

R$ 56,90

E-book: R$ 34,90