Terra, a Grande-Mãe 

Milton Marques Junior 

Na Teogonia, Hesíodo mostra como a Terra, Gaia (Γαῖα), é a grande-mãe do cosmos,  porque dela deriva toda a procriação. Ela pare o céu, que já nasce constelado, assim  como pare o mar e as montanhas. Desses partos, provêm o ar, o fogo, a água e a terra.  Dela ainda nascem os deuses, a vida e os homens. Conforme já afirmamos, em outra  ocasião, na cosmogonia de Hesíodo, porque a Teogonia, assim pode ser chamada, não  foram os deuses que criaram a Terra e a vida, mas a Terra, como deusa-mãe, que gerou os deuses e toda a vida, que se conhece. 

No grande encontro da vida, que se realiza no ponto 36, os seres animais encontram  as plantas, “as verdadeiras senhoras da vida”, como as chama Richard Dawkins, no seu  espetacular livro A grande história da evolução, aqui já mencionado. Trata-se de um  momento tão singular e tão distante, cuja datação, por sua natureza de mais de um  bilhão de anos, poderia se igualar no nosso imaginário, aos tempos míticos e imemoriais.  Já não dá sequer para dizer qual a relação avoenga que temos com as plantas, devido à  grande distância, que gera inexatidão e incertezas. De uma coisa, no entanto, Dawkins  tem certeza: a vida, sem animais e fungos, certamente continuaria, mas sem as plantas,  a vida rapidamente cessaria, por serem os vegetais “a base indispensável – os alicerces  mesmo – de quase toda cadeia alimentar” (p. 583). 

A sua grande importância para vida reside no fato de que as plantas captam, com  suas folhas funcionando como painéis solares, de estrutura o mais plana possível, os  preciosos fótons que a nossa estrela nos envia, maximizando-os e operando a  fotossíntese, que permite a sua alimentação e a produção de oxigênio, de que os seres  animais dependem. 

Seja qual for a data em que as plantas chegaram à terra firme, elas o fizeram antes  dos animais. A vida nasceu na água, mas precisou conquistar a terra firme para se  expandir e se consolidar. Esse movimento antecipado das plantas em direção à terra “é  quase óbvio”, diz Dawkins, tendo em vista que “sem plantas para comer, de que  adiantaria um animal ir para lá?” (p. 585). 

Vejamos a continuação do mito primordial de Hesíodo. Cronos corta os genitais do  pai, Uranos, para fazê-lo sair de dentro da mãe Gaia e, assim, libertar-se a si próprio e  aos irmãos, os Titãs, ali aprisionados propositalmente. Com o afastamento do pai da  cavidade da mãe, Cronos tem o espaço necessário para jogar fora os órgãos genitais  decepados. O sangue que cai na terra gera os freixos, os gigantes e as Erínias, como  símbolo da luta que se implantará na terra (gigantes belicosos e os freixos, de que se  fabricam as armas) e a perseguição de todos os que derramarem sangue parental (as  Erínias, deusas infernais). Já os órgãos, caindo na água do mar, ejaculam e formam as  espumas do mar, de onde surge Afrodite, a deusa do amor erótico, necessário à  procriação. Afrodite é, portanto, a primeira divindade que habitará entre os futuros 

mortais, cuja procedência está relacionada com Gaia. A deusa, em primeiro lugar atinge  a ilha de Citera, de onde o seu epíteto Citereia; em seguida, ela chega à ilha de Chipre,  ambas no mar Egeu, recebendo daí o epíteto de Cípria. 

A descrição de Hesíodo é de uma importância literalmente vital. Em toda a literatura  clássica, não há um trecho que possa ser de tão grande relevância para a criação da vida  quanto os versos 194-195 da Teogonia

ἐκ δ’ ἔβη αἰδοίη καλὴ θεός, ἀμφὶ δὲ ποίη 

ποσσὶν ὑπὸ ῥαδινοῖσιν ἀέξετο. 

e saiu a bela divindade veneranda, e ao redor a relva 

crescia sob os seus delicados pés. 

Façamos um encontro agora do que diz Dawkins com o que diz Hesíodo. Um  cientista evolucionista, dos nossos tempos modernos, e um poeta cosmogônico, dos  tempos arcaicos gregos, com uma distância de 2800 anos de um para o outro, juntam se para nos revelar a beleza existente entre a descrição da ciência e a imaginação da  poesia. 

Como não ver a óbvia relação do verbo crescer (ἀέξω), em grego, com a capacidade  de espalhar-se das plantas, de modo a captar o maior número possível de fótons? Por  outro lado, o termo que traduzimos como “delicados”, determinando os pés da deusa,  também pode ser traduzido como ágeis, rápidos e esbeltos. Há quem traduza o último  verso – ποσσὶν ὑπὸ ῥαδινοῖσιν ἀέξετο – por “crescia sob esbeltos pés”. Preferimos a  tradução que demos, não por duvidar que a deusa tivesse pés esbeltos, mas pela  delicadeza e agilidade dos seus pés, sob os quais a relva cresce e se expande, de acordo  com a natureza própria das plantas. Como deusa do amor erótico, que proporciona a  criação e uma deusa, sobretudo, que faz surgir a primavera, Afrodite é ágil e delicada,  pois uma coisa pressupõe a outra, em criar a vida na terra, assim que sai do mar. 

O casamento que acabamos de fazer entre Hesíodo e Richard Dawkins revela a  inexistência de aleatoriedade no mito, uma de suas principais características. O que o  mito nos apresenta não é casual, mas uma interpretação possível para o momento  específico de sua criação. Daí que a palavra, em grego, μῦθος, significa originalmente  narrativa, demonstrando uma lógica interna, que busca uma explicação para o mundo.  Por outro lado, a Poesia e a Ciência nos revelam o quão a vida é bela. Só precisamos  encontrar uma na outra, pois ambas preexistem nesse trabalho incansável que a Terra  vem nos proporcionando há bilhões de anos, como a Grande Mãe, para Hesíodo, trabalho que Richard Dawkins chama e utiliza como título de um de seus maravilhosos livros: O maior espetáculo da terra