PEDRO ROGÉRIO, EM BUSCA DA CIDADE PERDIDA

Edmílson Caminha

Natural que em grandes cidades (e pequenas, também) se passem histórias narradas em romances, contos, crônicas, livros de memórias e até poemas. Poucas, no entanto, merecem a atenção de escritores que mergulhem nessas obras com a minudência do historiador e a agudeza do crítico, para delas obter a lembrança de uma época, o testemunho de uma sociedade. Foi o que fez Pedro Rogério Moreira com Sob o céu de Belo Horizonte (Brasília : Thesaurus, 2020), em que nos dá a conhecer a capital de Minas Gerais pelo menos durante três décadas, de 1930 a 1960.

Trabalho dessa natureza teria custo maior não fosse o autor brilhante jornalista, que leu, releu e anotou essa extensa bibliografia com visão de repórter, à caça de boas histórias e de grandes personagens representativas de um tempo. Não é, pois, como se considera modestamente, um “leitor voyeur”, imerso em edições antigas tão só para bisbilhotar a vida alheia, mas pesquisador atento, em investigação literária talvez nunca antes empreendida quanto a uma cidade brasileira.

Criança, Pedro Rogério é recebido com o pai, Vivaldi Moreira, em casa da escritora Lúcia Machado de Almeida, quando se serve do doce imortalizado pelo romancista francês que lhe inspiraria, de certa forma, o livro sobre a Belo Horizonte do passado:

Uma tarde, acompanhando meu pai à residência de “Dona Lúcia-muito-chique-de-Almeida”, como dizia minha mãe, sua admiradora, provei daquela sensação que só agora, ao evocá-la, denomino de aristocracia espiritual. O menino teria dez ou onze anos. Foi-nos servido chá com as proustianas madeleines, que a anfitriã havia trazido de recente viagem a Paris, motivo, presumo, da visita de Vivaldi ao casal. (…) O menino desconhecia aquele tipo de biscoito, cujo nome ouviu pela primeira vez, nem imaginava quem fosse Proust.

À semelhança do estilista francês, o futuro escritor sairia, na plenitude da existência, em busca da cidade perdida, sabedor de que o talento para a ficção é vantagem que lhe favorece a prosa:

O historiador tem a obrigação moral de copiar a verdade, e por isso corre o risco de se transformar num chato de galochas; ao passo que o outro, ainda mais se tiver talhado no sangue um veio de romancista, pode edulcorar a realidade com os adornos que para ele são reais e para os leitores podem ser deleite.

Pedro Rogério não apenas leu e releu o que se tem de melhor na literatura inspirada por Belo Horizonte, mas deu-se o trabalhoso propósito de fazê-lo comparativamente, à procura de descrições e de narrativas que se possam ter como elos entre A Capital, de Avelino Fóscolo, e Inquietude, melancolia, de Eduardo Frieiro; ou O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, e O encontro marcado, de Fernando Sabino; ou Memórias de um chauffeur de praça, de Moacyr Andrade, e Prisioneiro do círculo, de Ricardo Gontijo; ou O cabo das tormentas, de Frieiro, e Hilda Furacão, de Roberto Drummond… A colheita é substanciosa: elementos com tamanha riqueza que compõem um painel belo-horizontino válido também para Fortaleza, Recife, Salvador, Porto Alegre ou qualquer outra capital naquelas alturas do século XX. Cenas em que se distingue, sobretudo, a realidade econômico-social da classe média, com os atores que lhe são próprios: empregados, profissionais liberais, jornalistas e funcionários públicos. Estes, os que conseguem, à força de amizades e cavações, viver à custa da burocracia, à sombra do governo, como bácoros famélicos a mamar eternamente nas tetas da Grande Porca, o estado–mãe que a todos provê.

Tempos de que o jovem candidato a escritor ainda viveu os últimos suspiros, nos braços das mocinhas com quem sexualmente se saciavam os menos pobres do que elas:

Ah! Mas a gafieira Elite! Aquilo ali era um oceano de negras bonitas, cheirosas e amorosas. Uma maravilha sob o céu de Belo Horizonte. Puxa vida! As coxas carnudas de Rosamaria convergindo para o triângulo cósmico primordial foram estímulos para o jovem descer das grimpas da Serra do Curral daquele corpo escultural para provar o perfume e o sabor das flores existentes em vale de relva ondulante no Ribeirão do Acaba Mundo da fantasia sexual. (…) O quartinho só era franqueado para esses encontros nas noites de sexta-feira, quando a tia dormia no emprego a fim de preparar o ajantarado de sábado dos patrões. O recato da moça demonstrava ser ela herdeira das tradições de moralidade de seus retos avoengos da Fazenda Velha que viram o sol da liberdade em 1888.

Como um rio subterrâneo, o sexo perpassa o texto de Sob o céu de Belo Horizonte, com a participação de médicos, em especial ginecologistas, que transformam as mesas de exame em leitos de amor; motoristas de táxi, cúmplices discretos a levar e trazer furtivos amantes; padres libidinosos, que roçam a barba nos pequenos em confissão; e meninos que, ao primeiro ronco dos pais, deslizam feito cobras para o quarto das empregadas: “Numa certa hora da noite a gente fica invisível, é batata!”, garantia ao adolescente Pedro um colega que poderia ser criação de Nelson Rodrigues. Outro, mais tímido, deleitava-se com a fofura complacente da roupa de cama:

O Ricardo, aos doze anos, iniciou demorado caso com um travesseiro do velho Hotel Gontijo. Dormia com o dito entre as pernas, entre os braços, falava baixinho com ele, beijava-o. Era um travesseiro de fronha verde, bem maciozinho, jeitoso. Um dia chamava-o Maria, noutro Marisa, Célia, Ana, Carmem, Sônia Mamede, Ava Gardner, carnes reais ou fictícias que habitavam sua solidão sacana. A mãe, às vezes, tinha de ralhar com o filho, porque ele não permitia que os serviçais do hotel de seu pai sequer tocassem no travesseiro. Era um amor ciumento.

Verdadeiras ou imaginárias, as mulheres, ontem como agora, sabedoras de que provocam o desejo masculino, a exemplo da que declara em O amanuense Belmiro: “Você não calcula o que é ser cortejada pelos homens. Todos me olham como se quisessem devorar-me. E às vezes sinto-me fraca, tenho medo de ceder”. Ou a personagem de Eduardo Frieiro, caridosa para com os homens a quem dava tudo, menos a “coroa de virgem”, reservada para o santo que a pedisse em casamento. Praticava o “amor francês”, como depois explicaria a um Pedro neófito o experiente Dr. Mário, pai do futuro cronista Paulo Mendes Campos…

Casos picantes, fictícios ou reais, que poderiam acabar em tragédia, como o de um companheiro de infância de Carlos Drummond de Andrade, lembrado em versos não propriamente elogiosos: “Hildebrando insaciável comedor de galinha. / Não as comia propriamente – à mesa. / Possuía-as como se possuem / e se matam mulheres.” Ciente da indiscrição, encheu de balas o revólver em Belo Horizonte e abalou-se para o Rio de Janeiro, à procura do poeta: “Eu vou matar o Carlinhos! Eu vou matar o Carlinhos!” Amansado a tempo, voltou para as penosas da sua Itabira natal…

Vendedor na Livraria Itatiaia, dos tios Pedro Paulo e Edson Moreira, o jovem Pedro Rogério embrulhava livros com as oiças no que conversava a ilustre clientela, formada por políticos, escritores, jornalistas e empresários. Soube, assim, que o prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, aproveitava as inspeções das obras na então longínqua Pampulha para, belamente acompanhado por mulheres, matar duas fomes com uma só cajadada: à mesa, no restaurante da Maria das Tranças, e depois na cama, em casa do alcoviteiro amigo Joubert Guerra. Maria das Tranças em que também se fartou o casal Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, na Belo Horizonte de 1960. Após o almoço, os dois foram chupar jabuticaba na mansão de uns capitalistas, talvez a mais profunda experiência existencial que tiveram na vida…

Essa, a Belo Horizonte de outrora que Pedro Rogério sente viva, ao contemplar não o céu comum a todos, mas as pedras que, polidas por gerações de que se faz a história, pavimentam o caminho de cada um como se pisadas pela primeira vez:

Quem olha para o chão se acha, mesmo que a topografia tenha sido assassinada pelo império dos tempos. Por mais que a marcha inexorável da mudança violente o passado, por mais que a mão humana possa desfigurar a imagem do nosso mais terno amor, sempre permanecerá uma sombra daquilo que um dia foi por inteiro. Por isso, é preciso olhar para o chão em busca do caminho do tesouro. Mineirar. Garimpar o cascalho da alma das ruas para encontrar um instante apenas de felicidade, o fiapo de uma esquecida alegria.