O ano infernal de Amélie Nothomb

                                                                     Vera Lúcia de Oliveira

            No começo, ela servia cafezinho para os chefes. Foi rebaixada dessa função porque, como ocidental, não poderia ser tão perfeita quanto uma japonesa no refinamento e fórmulas de cortesia. Mas ela era. Estamos em Tóquio, e a moça é Amélie Nothomb (1967-   ), escritora belga que conta no premiadíssimo livro Medo e Submissão (RJ: Ed. Record, 2001) sua passagem como funcionária indesejada durante um ano numa grande empresa japonesa. Um pesadelo.

Nesse romance autobiográfico, o aspecto que primeiro chama a atenção do leitor é a coragem da autora. Filha de embaixador, nascida no Japão, viveu em vários países do Oriente, sobretudo na China e Japão – falando fluentemente a língua japonesa -,  aos vinte e um anos de idade e estudos superiores, foi contratada pela empresa Yumimoto como tradutora, função que nunca exerceu. Começou pelo cafezinho, mas logo foi punida, rebaixada a trabalhos inúteis ou absurdos como classificar faturas, passando dias inteiros sem sair da cadeira copiando interminavelmente letras e números, “como um monge da Idade Média”, ironizou; depois confiaram-lhe outra tarefa de Sísifo, que ela errava e passava noites em claro a refazer sem nunca acertar. “Um dos piores pesadelos da minha vida”, disse ela, até chegar ao fundo do poço, isto é, à latrina, reduzida ao “nada absoluto”. Amélie ficou horrorizada com a dureza da hierarquia do país do Sol Nascente, com o machismo de uma sociedade em que as mulheres, mesmo altamente qualificadas, conservam alguma coisa de gueixa.

Esse livro corajoso, repetimos, tira o véu ou a cortina de fumaça que esconde a natureza das relações humanas e sociais, a aura do belo Japão das cerejeiras em flor e do Monte Fuji, da delicadeza e boa educação, imagem consagrada do país no exterior. A experiência do trabalho solitário que silenciava Amélie levou-a, anos mais tarde, a pôr a boca no trombone publicando essa história em que conta o inferno que viveu no quadragésimo quarto andar do edifício em que trabalhava, de onde via a cidade lá embaixo, através da janela de vidro, sua “prisão” durante sete meses, dos doze em que lá esteve, só suportando porque criou asas e voava pela cidade em sua imaginação de escritora, da grande escritora que se tornaria já no primeiro livro Higiene do assassino (1992). Enfrentou nesse quadragésimo quarto andar a ira de sua chefe imediata, a belíssima e cruel Fubuki, que a torturava psicologicamente, uma das raras mulheres na empresa gigantesca e a única a ter ascensão profissional. E Amélie traça o perfil da mulher japonesa com tintas fortes: são mulheres servis que se encolhem diante dos homens, que só têm deveres na vida – como casar e ter filhos -, que se sacrificam pelos outros, que são infelizes, que deslizam feito sombras como se fossem invisíveis, que comem pouco porque “é vergonhoso ficar roliça”, que têm o dever de ser belas:

Se admirares tua própria beleza no espelho, será com medo, e não por prazer, pois tudo que tua beleza te proporcionará será o terror de perdê-la. Se és uma bela jovem, não serás grande coisa; se não és bela, serás menos que nada.”

            Foi, portanto, no alto de um arranha-céu que Amélie teve o mais baixo reconhecimento como profissional e ser humano, pois era mulher e ocidental.

O Japão dos homens de honra, dos lendários samurais e Mishimas, revela-se nesse livro como uma farsa: homens mal-educados, grosseiros, dissimulados e submissos a um sistema hierárquico petrificado que não aceita mudanças, que espalha o medo a funcionários que sofrem horrivelmente quando são obrigados a gozar três dias de férias pelo Ano Novo, pois não sabem o que fazer sem o trabalho, já que “a vida é a empresa.”, como diz a autora. Um sistema de escravidão moral que leva ao suicídio quem não brilhar ou não se adaptar ao regime. E tudo é muito sutil, nas entrelinhas.

Amélie é corajosa em narrar a própria experiência, tirando-a do silêncio, do não-dito, dando voz à humilhação sofrida, fazendo o que se faz muitas vezes aqui no Brasil: de um limão, uma limonada – ou caipirinha. Tirou lucro da grande perda (de tempo). Aceitou com bom-humor a sua estada espinhosa de um ano nessa empresa e fez dela um aprendizado; ironizou e até se divertiu com as situações atrozes que viveu e, para sua surpresa, encontrou alguma solidariedade (silenciosa) masculina. O resultado é um livro excelente, cheio de vigor e energia, de reflexão sobre duas culturas paradoxais, com o talento dessa escritora que leva mais longe a literatura de língua francesa.